quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pouco sobre minha mãe...



Ela, entre simulando e sentindo súbita indignação, esbraveja: “vocês são um bando de filhos da puta, tudo filho da puta”. Uma gigante do alto dos seus 1,56m de altura, e fornida como uma bola caprichada de sorvete de creme na casquinha, ela briga diariamente com tudo e todos, mas sua principal adversária vai a nocaute todos os dias – a preguiça – quando se prepara para sua rodada diária de exercícios onde além de queimar a tensão e a energia acumuladas, avança de seu formato cônico rumo ao sonhado contorno de ampulheta.

Mamãe é confusa e complexa, como todas as pessoas, mas um pouco mais que elas. Explosiva e voluntariosa, sua aparência dócil na juventude não entregava sua personalidade beligerante nem sua mente “máquina de guerra”. Sim, mamãe é um cavalo de troia, de repente abrem-se os compartimentos e milhares de homenzinhos saem atacando por todos os lados.

Ela está deprimida, de um jeito próprio que subverte a palavra “depressão”. Meu irmão, aprovado em todas as universidades para as quais prestou vestibular, entendeu por bem cursar aquela que o manteria afastado dos olhinhos puxados de minha mãe, e isso foi um duro golpe para a sua alma galinácea. Afinal, podermos ser filhos da puta, mas “nós temos mãe” e ela está deprimida. Ou, talvez, angustiada, porque a depressão, senso comum, pressupõe redução de movimentos e ela anda mais agitada do que nunca.

Minha mãe é MÃE, uma mãe portuguesa, Maria. Uma mãe italiana, fazedora de espaguete, que gesticula, que manda, mas que obedece. Obedece aos seus cavalos, a seus instintos, ao seu instinto, o maternal. Entre tantas coisas aprendidas, dessa – ser mãe – ela nunca esqueceu. Entre tantos trabalhos iniciados, desse – ser mãe – ela nunca desistiu. Promovida ano a ano, ela é hoje uma “Chief Executive Officer” (CEO) da companhia do “pare, banha, alimenta, cuida, lava, passa, briga, educa, vibra e chora, surta e grita” que fundou.

Como toda boa mãe, a minha é Jocasta. Apaixonada por seus Édipos. Eu e minhas irmãs, versões geneticamente modificadas de mamãe, graças a pequena, mas relevante contribuição paterna, fazemos terapia em grupo na ânsia de superar o drama de ocuparmos o segundo lugar em predileção. E que ela não me ouça fazer tal confissão, senão passarei a noite sob os ecos de “figlia di una puttana”.

De dentro do quarto, envolvida em leitura eu escuto o barulho que vai de perturbador a irritante. É a segunda vez no mesmo dia que ela aspira o apartamento, num vai-e-vem obsessivo-compulsivo, sob a alegação de que não consegue habitar um chiqueiro. Vou ao meio da sala, sento e lambo o chão. Eu poderia fazer todas as minhas refeições ali, sem qualquer recipiente. Colocar o arroz no piso, derramar um pouco de feijão e “voilá”. Nem um único microorganismo pra compartilhar a refeição.

Na praia, sentadas em cadeiras, dividindo o mesmo prazer em sentir o sol torrar os miolos e a pele, relaxada, ela inicia uma prosa lenta, entre feliz e empolgada, por vezes sofrida, em que discorre acerca da vida e de seu amor incondicional pelos filhos, cinco. Um pacote de biscoitos de polvilho e uma água mineral depois, ela levanta, acerta a lateral do biquini e determina: hora de voltar pra casa para mais uma sessão de “trabalhos do lar”. Já na cozinha, intimada como colaboradora, abro a geladeira, meses de estoque de alimentos se espremem nas gavetas, onde eu procuro a carne que deverá ser preparada. Minha mãe nunca passou fome, pelo menos não literal. Talvez sua fome psicológica (?) justifique suas compras surreais. Suas idas ao supermercado, aliás, sempre representaram um grande sofrimento na minha infância e adolescência, ainda que não me desse conta à época. Constantemente pressionada por ela para que mantivesse um corpo razoavelmente magro, o apelo que os chocolates comprados e guardados em enorme quantidade no freezer era tão grande, que passei boa parte da vida gordota.

Ela é divertida. Suas risadas escandalosas ecoam por toda a casa, sua felicidade transborda quando está bem humorada. Invariavelmente a razão de suas alegrias é a própria família. É com um prazer despudorado e, às vezes constrangedor, que ela exibe orgulhosa os feitos da prole, para qualquer um que lhe apareça pela frente, saboreando de antemão a suposta inveja que filhos “tão bem criados” podem causar em pais mais desavisados e menos zelosos da educação de seus descendentes.

Minha mãe ama, enlouquecidamente. Tem a capacidade que só mães, e nem todas, têm de se reconstruir, tornar-se outra, se superar, por amor. Basta uma expressão diferente, um lamento, um chamado e ela deixar de ser tudo que é, pra ser somente mãe. Por dom, esquece-se de si mesma, e só tem olhos para o outro. Aguenta todos os desaforos, que outrora não ficariam sem resposta, por aqueles que ama. Dá-lhes os nervos, a voz, o fígado, os rins, o coração, se preciso for. Ela dá suas roupas, todas as vezes que eu e minha irmã nos metemos a vistoriar seus armários. Assim o faz por não poder dar sua própria pele. Escalpelar-se-ia, se pudesse, para nos cobrir.

Ela é imperfeitamente perfeita. Ela é imperfeitamente amada. Merecia mais. Como sempre acontece, um dia sua falta vai ser imensamente sentida e a culpa eventualmente habitará o coração daqueles que hoje a amam, imperfeitamente, mas deveras, porque a gente sempre acha que podia ter feito melhor, sentido melhor, vivido melhor.

Ela agora, fica mais sozinha, já são quatro os filhos migrantes, resta a pequena Bia. A pequena Bia que é mais uma prova de sua inesgotável habilidade para gerar e amar. Uma versão minúscula e aperfeiçoada de si mesma.