terça-feira, 18 de setembro de 2012

Reflexões pós-cirúrgicas

Lixo: apenas partes do corpo vestigiais e orgãos inúteis (ex. apêndice, amígdalas e  vesícula)


É o dia mais quente do inverno. Minha barriga dói. Deitada sobre ela, entediada, sou de tempos em tempos assediada por ondas de calor e culpa. O ventilador não traz alívio. Ele se aproxima, cruzando o pequeno corredor. A camiseta laranja velha e a cueca branca denunciam os anos de relacionamento: catorze. Ele me beija as costas, acha graça do modelo da calcinha e examina meus tornozelos. Sai do quarto e retorna em 10 segundos carregando uma lâmina cega de barbear. Eu emito grunhidos de irritação e alguma dor ao me mover enquanto tento mantê-lo perceptível aos olhos. Ele agarra minhas pernas e passa a raspar alguns pelos ralos. Eu me contorço pra evitar uma gargalhada e a barriga dói mais. Eu amo esse homem.

São 04 pequenos pontos roxos estampando uma piscina de pele cor de rosa.

Quando eu era pequena, e tive catapora, costumava me esconder no banheiro onde meu pai guardava nossa pequena farmácia para mexer nas agulhas descartáveis, as esterilizava com perfume e ia espetando, uma a uma, as bolhinhas sobre a pele. Sempre gostei de experimentos do tipo: estourar bolhas, espremer machucados, arrancar casquinhas, apesar de ter renegado a medicina como ganha-pão.

Cada ponto roxo é coberto por uma capinha plástica, grudada à pele, tão grudadinha que a custos contenho o ímpeto de ir deslizando a unha por baixo, descolando o tecido transparente que começa a sair do lugar.

Sinto-me um pouco grávida ao contrário. O parto fora feito, mas a barriga inchada e os incômodos vieram depois. Eu pari umas pedrinhas e alguns pedaços de vesícula, abandonados em um potinho transparente que repousa sobra a mesa de jantar. Ainda no hospital, eu achei aquele souvenir pós-cirúrgico um tanto mórbido, quis abandoná-lo na lata do lixo, tal qual certas mães desalmadas o fazem após parirem as crias, mas não consegui. O fruto do meu ventre foi recolhido pelo marido, preocupado com gentilezas: “eles tiveram o trabalho de separar em um vidrinho e etiquetar, eu não poderia deixar lá”.

Agora, meu mundo cai e a barriga dói.

São contas de bancos a entrarem de greve, uma cozinha que não se monta sozinha, decisões pesando sobre o pescoço como guilhotinas e um medo grande, bem muito grande do futuro próximo.

A sexta-feira chegava com o emprego novo, e o meu corpo confundido pelas minhas expectativas, resolveu ele mesmo me dar trabalho.

Corremos todos ao hospital, eu e a família onipresente. Horas de espera e nenhuma dor – graças às ironias da vida, 04 buscopans e um metabolismo garfieldiano. Optou-se pela mutilação.

Já na sala de cirurgia, dopada, eu sabia o que estaria por vir, mas não antecipei os desdobramentos. São 04 singelos furos. Por um deles me enchem de ar, que nem balão de aniversário; pelos outros três cortam e recortam o saquinho quase inútil que deu pra me sacanear. Eles te enchem de gás carbônico, e depois ficam com preguiça de chupar o resto de volta, aí você fica assim, parecendo bexiga de fim de festa.

domingo, 24 de junho de 2012

NÃO QUERO SER NIEMEYER








Eu nunca gostei de dormir na casa de outras pessoas.

Quando ainda era uma criança, naquela idade em que a ideia de desbravar novos mundos era traduzida em dias de brincadeiras e noites de sono na casa de coleguinhas, nunca me sentia bem diante da possibilidade de me entregar a Morfeu em qualquer outro lugar que não fosse o meu quarto.

O cômodo amplo continha duas camas de solteiro que eram unidas todas as noites e o espaço persistente entre elas preenchido por um cobertor peludo e listrado em laranja, marrom, amarelo e vermelho. À direita meu corpo, à esquerda o de minha irmã, Alline. Muitas noites, minha mãe se deitava sobre o buraco coberto, nos fazia rezar e contava histórias cujos finais delirantes me intrigavam e à Alline irritavam, quando esta atenta notava que eram frutos do estágio avançado de sono em que a narradora se (des)encontrava.

Não havia mosquitos, nem barulho, só o vento gelado e agradável do ar-condicionado, as várias camadas de colchas de piquet, os travesseiros de pena e os narizes entupidos de vick-vaporub.

Era tão agradável o estado das coisas, que a menor ideia de me faltar qualquer uma delas, era suficiente para me tirar o sono. O primeiro bocejo na casa de alguma colega era o alerta de que era hora de ir para casa.

Uma série de mudanças bruscas em minha vida me conduziram, então, a um extremo antes inimaginável. Tornei-me nômade. Dos 16 aos 31 anos, troquei de casa dez vezes e, em poucos meses, deverei me estabalecer naquele que será meu décimo-primeiro endereço. Mas, o nomadismo a que me refiro, vai além da questão da residência. De apegada às mínimas coisas que me cercavam na infância, tornei-me um indivíduo caótico, apaixonado, instável e desasossegado. Foram tantas as camas diferentes, as amizades novas, as separações familiares, os reencontros de alma, os mosquitos, o frio, o calor, e as histórias, coerentes ou não, vividas e contadas por mim mesma, que hoje eu só tenho o meu próprio eu como referência torta e ideia de lar, porque por onde quer que eu ande, é sempre para mim que eu acabo por voltar. Não tolero mais permanências e nem vick-vaporub.

Sou pouco afeita a decorações de ambientes. Em nenhum dos trabalhos que tive, em salas de aulas e escritórios, cultivei o hábito de manter porta-retratos e objetos pessoais. A ideia de ter que retirá-los quando chegasse o momento de ir embora me perturbava. Tentei vencer essa impessoalidade nos lugares em que vivi, mas a coisa toda saía desastrada e incompleta, entregando esse estado de alma de “sempre pronta para partir”.

À medida em que este meu suposto desapego por situações e lugares cresce, uma saudade infinita e colossal de tudo que eu vivi às vezes aperta. O que torna pior essa nostalgia, é que ela é representada por rostos e vozes, braços, pernas e sentimentos.

Não me importo com as mudanças de planos, caminhos e sonhos. Não me importo mais com o desconforto do diferente. Mas, algo, dolorosamente, permanece em mim. A necessidade de ter as pessoas que fazem parte da minha vida, ao meu lado, em seus postos e condições, imutáveis, presentes, reais. Jamais me acostumarei a perder pessoas. Do conforto de encontrá-las, cumprimentá-las, abraçá-las, conversar com elas, nunca serei capaz de abrir mão resignada. Não aceito ser abandonada. Penso que só a mim caberia o direito de ir, nunca a possibilidade de ser deixada.

Só que o tempo não faz concessões e varre os personagens da minha história sem pedir permissão. Levou-me os avós, a professora de Biologia, alguns dos meus ídolos, o pai do homem que eu amo. E, em alguns momentos, seu tic-tac infernal invade meus ouvidos, meu cérebro, meu espírito, me despertando para a precariedade desta vida.

Há dois dias, atrasada  e sonolenta, eu jogava o corpo para dentro de um táxi, praguejando contra a humanidade incompetente e preguiçosa que ainda não inventara o teletransporte. No caminho para o trabalho, o taxista, e velho conhecido, comenta a morte de um dos porteiros do meu prédio. Enquanto ele puxava o nome em sua memória, eu vasculhava a minha, organizando imagens de homens por turnos de trabalho. Em sincronia com a figura que eu visualizava, o nome pronunciado pelo meu condutor: “Seu Edvaldo”.

Seu Edvaldo era o porteiro do dia e homem da administração. Nunca soube ao certo a função que exercia, mas era ele quem me acodia em momentos de dúvida sobre regras condominiais, nas confusões com entregas da lavanderia e quem sempre autorizava, sem muita encrenca, meus pedidos de livre-circulação de carros de amigos e parentes em minha vaga de garagem. Mas, o que eu mais apreciava no Seu Edvaldo, era seu jeito atencioso de cumprimentar cada uma das pessoas que passavam pelo portão do prédio. De dentro da casinha de vidro, ele sempre acenava. Sua figura agradável me confortava. Pequeno e entroncado, mulato, a carapinha cortada rente ao couro cabeludo, um par de óculos e um blaser azul-marinho, são estes os substantivos e adjetivos bastantes para caracterizar fisicamente o homem; no entanto, foi-se a oportunidade e eu jamais saberei quais os adjetivos e substantivos suficientes para descrever sua personalidade. O certo é que, Seu Edvaldo era aquele cobertor listrado no meio da cama, o ar-condicionado potente, minha oração diária. Seu Edvaldo era a referência, o ponto fixo, o conforto, em meio a rotina estressante, caótica, impessoal. Podia tudo mudar, todos os dias, toda hora, mas eu me reconheceria sempre no começo de cada dia, ao sair de casa e avistar de longe o homenzinho que balançava a cabeça em retribuição ao meu olhar.

Seu Edvaldo acordou bem cedo e foi preparar-se para o trabalho, enquanto vestia o blaser marinho em um dos braços, foi tomado de assalto por uma dor fulminante que lhe tirou a vida após render o coração. Ao saber dos fatos, em solidariedade ao coração vitimado, o meu coração se apertou e eu fui tomada de uma tristeza súbita ao me dar conta de todas as ausências matinais que adviriam ao longo de cada um dos dias que ainda faltam para minha nova mudança de lugar. Senti um pouco de raiva e de frustração. Não era para ele ter ido. Era eu quem o iria abandonar. Como ele ousara? Pensei pesarosa na família de Seu Edvaldo, nas duas filhas ainda muito jovens, mas, nessa horas, sou egoísta demais para esquecer minha própria dor.

Após um longo dia de trabalho, retorno ao meu apartamento em meio a algumas elocubrações que me davam esperança de que o motorista que me deu a notícia tivesse se equivocado. A poucos passos do portão de entrada, meu coração se acelera, e eu sigo aos saltos em direção à ladeira que me permitiria ver a casinha de vidro no alto. Alguém me cumprimenta. Eu trazia uma mala roxa de viagem – cuja presença na cena, vou me permitir não justificar – que arremessei à minha frente, dei meia volta e em pequenos trotes me dirigi à portaria. Sorriso de orelha à orelha. À minha frente surge um homem muito alto, jovem e gordo. Fecho a cara, mas noto um movimento dentro do lugar, tento avançar, mas o gigante me impede a passagem e fica ansioso com a minha ausência de explicações. Começo a ficar impaciente e pergunto:

-  Quem tá aí?

O moço franze a testa e um outro se junta a ele, saindo de dentro do lugar. Não consigo disfarçar a decepção:

- Mas, cadê o Seu Edvaldo?

Eles se entreolham surpresos, sem entender. O homem grande abre a boca:

- Mas, ele faleceu... A senhora não viu o aviso no elevador?

Como uma criança, me desespero um pouco, aperto os olhos e disparo, após bafejar:

- Eu sei, mas alguém me cumprimentou...E eu tinha a esperança que não tivesse sido ele...que morreu...

Os dois homens vão da estupefação à indignação e, por fim, às gargalhadas. Em uníssono rebatem:

- Então a senhora tinha esperança que tivesse sido um de nós???

Um deles ainda rindo e contrariado:
- Deus do céu, antes ele do que eu!

Quis enfiar a cabeça de avestruz no buraco. Como pude ser tão indelicada!? Quis explicar que a esperança do engano não era desejo de desventura de outrem, mas faltou energia, vocabulário e, talvez, um pouco de convicção.

Subi os cinco andares pensativa, triste e envergonhada. Continuei assim por dias e concluí que não quero mais que ninguém que eu conheça suma da minha vida. E não quero que minha vida dure tanto tempo assim que isso se torne inevitável. Não, eu não quero ser Niemeyer.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

YES, NÓS TEMOS MAÇÃ



          Em uma ruazinha inclinada de paralelepípedos, na Glória – o  bairro da zona sul carioca mais próximo da região central, que jaz espremido entre os tradicionais bairros de Santa Teresa, Lapa, Flamengo e Catete – observa-se, de um lado e outro, uma fileira de casarões antigos, cuja imponência cedeu espaço à degradação. Janelas e portões carcomidos pela ferrugem e as inúmeras pichações nos muros, por pouco não impedem os transeuntes de adivinhar a persistente beleza das velhas construções do lugar.

          Entre um casarão e outro, uma estreita passagem protegida por grades, deixa entrever uma pequena vila ao fundo. Equilibrando-se em uma altíssima sandália plataforma, uma mulher opulenta, vestida com uma calça preta costurada ao corpo, camiseta regata amarelo-limão justa aos quadris e um pequeno top branco coberto por lantejoulas prateadas e douradas, caminha lentamente e sem vontade em direção à entrada. Após uma breve troca de cumprimentos, ela comenta aborrecida que o motorista que a levaria a uma festa, que se iniciara às 14hs na quadra de uma  escola de samba, tivera qualquer problema e não poderia buscá-la em casa. Tentaria contato com um outro moço que ocasionalmente lhe prestava serviços de transporte, mas explicava que não podia precisar quanto tempo demoraria até que ele chegasse. Nesse instante, estabelecem-se os limites e o padrão de nosso relacionamento ao longo das dez horas em que acompanhei Gracy Kelly, a mulher-maçã.

          Evasiva, Gracy Kelly diz “não” sem pronunciar a palavra. Deixou claro, sem abrir a boca, que eu não poderia passar da área da calçada, mas educadamente postou-se junto à parede da campainha onde demos início a uma conversa truncada, um tanto superficial e cheia de pausas e interrupções, que se arrastaria até 1.30h da manhã do dia seguinte.

          Enquanto ela me passa a programação do resto do dia, três meninas entre 7 e 8 anos, aproximam-se encantadas com a moça, excitadas diante de tanto brilho e reconhecendo sua imagem dos programas de televisão. Uma delas mostra-se bastante surpresa ao constatar que vivem próximas: “Mulher-maçã, você mora aqui???” Duas das pequenas disputam sua atenção, enchem a vizinha famosa de abraços, elogiam sua beleza, tocam as unhas longas e desenhadas, os cabelos escovados, as pulseiras coloridas e, por fim, pedem beijos e emprego. A terceira menina, mais tímida, apenas observa. Gracy Kelly, desgastada pelo assédio, ao qual correspondeu com aparente doçura e educação, pede licença para voltar à casa por alguns minutos e saber do motorista que aguardávamos. As crianças se voltam para mim, dão início a uma espécie de concurso e me exigem como juíza. Suspendendo as camisetas e empinando os pequenos traseiros, passam a imitar, freneticamente, passos de funk enquanto ansiosas aguardam meu veredicto sobre qual delas seria a candidata ideal à colaboradora da Maçã. Constrangida com o espetáculo, suplico que parem e as convenço a voltar pra casa, depois de mentir que Gracy Kelly resolvera ir dormir e que eu mesma partiria em alguns instantes.

          Após minutos, Gracy Kelly retorna. Ao mesmo tempo  um carro estaciona e William, o motorista, abre a porta e nos cumprimenta. No caminho, eu tento dar direção à conversa.
         
          Antes de deixarmos nosso ponto de encontro, a dançarina havia falado um pouco sobre sua relação com o funk, gênero musical que a tornou conhecida.  “Bem, música que a gente gosta é música que a gente escuta em casa, né? Pergunta o que eu escuto! Gospel e MPB.” O som que ela aprecia no dia a dia é bem diferente do batidão ritmado, de coreografia sensual que ela executa em shows nos fins de semana.

          Volto ao assunto no carro, diante de uma Gracy Kelly frustrada. No caminho para Padre Miguel, onde a presença da mulher-maçã é aguardada, passamos pelo aterro do Flamengo, onde o seu estado de humor é justificado. Naquela tarde, o maior evento de música religiosa já realizado no país reunia milhares de pessoas e a dançarina ansiava se juntar a elas. “O que eu não posso fazer, tu podes. A mudança que eu preciso, tu podes. O milagre que eu espero, tu podes. Senhor, vem me socorrer. O meu milagre, Senhor, eu tomo posse. A cura que eu preciso, eu tomo posse. A minha benção, Senhor, eu tomo posse. Abro as mãos para  receber”, ela cantava, fechava os olhos, implorava ao motorista que passasse mais próximo e devagar do lugar onde um telão transmitia ao vivo Regis Danese, um dos expoentes da música gospel da atualidade, e lamentava.

          Toca o telefone. O tom de voz sutilmente alterado e o jeito de falar de Gracy Kelly denunciam o interlocutor. Um bom tempo de conversa, sem nomes, sem frases longas, reafirmam sua habilidade de dizer sem verbalizar. Ela desliga e eu aproveito a deixa, indagando sobre a existência de um namorado. Ela confirma e se cala. Insisto no tema. A relação tem cerca de um ano, não há grandes expectativas, ela gosta do rapaz, mas não tem planos de casamento. “Gosto dele, mas não penso nisso. Vai demorar.” Disfarço a surpresa. A declaração, somada à conversa que presenciei, em bom português, faz crer que releases não muito antigos de sua assessoria sobre um suposto noivado com um ragazzo italiano, repercutidos na mídia especializada em bisbilhotar a vida privada de pessoas públicas, seriam material mais hábil a alimentar um romance do que páginas de revistas e jornais.

          Silêncio. Me vem à mente um outro tópico. Há pouco, nova polêmica em torno da figura curvilínea da Maçã gerou debates e deboches nos meios de comunicação. No intuito de ampliar alguns contornos de seu corpo, a moça teria dado início a um tratamento inusitado. Sua assessora, uma tia – conforme ela me confessara ainda na saída de casa –, declarara aos quatro ventos que Gracy Kelly estaria se submetendo a uma técnica tailandesa inovadora de aumento dos seios. Pasme-se: à base de tapas na cara. Não resisto: “Doeu?” Ela conta que a experiência, apesar de dolorida, fora gratificante. Questionei os resultados. Sem responder, ela me dá um tapinha na mão, com a outra gira o dedo indicando adiamento da conversa e aponta para o motorista. Insisto, num tom mais baixo: “Mas, onde eram os tapas mesmo?” Ela confirma a tortura facial.

          Pouco antes do nosso encontro eu havia percorrido sites de busca curiosa sobre o método sado-masoquista. De fato ele existia. Apenas um detalhe destoava da versão que me fora narrada: os tapas eram distribuídos na região que se queria ver aumentada. Tornei a olhá-la, das bochechas ao colo, do colo às bochechas, tentando compreender o que havia se passado.

          Chegamos à quadra da Mocidade. Um prédio antigo, branco, cujas entradas estavam protegidas por homens trajados nas cores da escola. Ao fundo, centenas de casas simples, desorganizadamente dispostas. No entorno, barraquinhas vendendo bebidas, cachorros-quentes e outras guloseimas de preparo duvidoso e certamente pouco questionado pelas pequenas multidões em pé que faziam seus pedidos ou sentadas degustando um dos itens do cardápio. O som do samba ecoava.

          As pessoas que liberariam a entrada de Gracy Kelly ainda não haviam chegado. Ela se coloca junto aos guardiões do portão de entrada e começa a telefonar. Um de seus anfitriões, do outro lado da linha, pede que ela aguarde sua chegada. Ela desliga o telefone um pouco contrariada, um dos seguranças nota e pergunta quem ela é. Mulher-maçã se apresenta como tal e completa: “sou musa da escola”. O rapaz contrai o rosto e avisa que o presidente está chegando com a família, como se pedisse um pouco mais de paciência. Ela confere as unhas, joga os cabelos de um lado para o outro, puxa a camiseta amarela para baixo – ritual recorrente ao longo das 10 horas que passei com ela –, lastima mais uma vez o show gospel perdido e passa a brincar com a touch screen de seu Iphone.

          O aparelho remete a mais uma controvérsia na curta vida midiática de Gracy Kelly. Steve Jobs, um dos fundadores da empresa de tecnologia Apple morreu de câncer. No embalo das notícias que repercutiram o fato, a assessoria da dançarina fez publicar uma nota onde ela chorava a morte de “Esteve”, o “inventor de grandes modernidades”, e abusava da criatividade ao cogitar um vínculo entre o reconhecimento da figura da moça no exterior e o sucesso dos empreendimentos de Jobs.

          Maçã se orgulha de seus shows internacionais. Diz que visitou a Europa, países da América do Sul e os Estados Unidos levando seu rebolado aos palcos de alguns eventos e fazendo marmanjos ensandecidos gritarem: “Ah, eu tô maluco”. O bordão é também letra – na íntegra! –  de um funk que ficou conhecido nos estádios de futebol em vários cantos do mundo, onde times brasileiros e outros sul-americanos disputaram partidas.

          Com a chegada da família-chefe da escola de samba de Padre Miguel, nossa entrada é autorizada e rapidamente chegamos ao camarote no primeiro andar  do prédio, reservado para familiares e amigos do presidente, convidados supostamente ilustres e figuras públicas mais ou menos conhecidas. Ela aponta um banco verde, longo e alto, em formato zig-zag, encostado na parede dos fundos do camarote, e se senta. “É o meu canto”. Quieta, cumprimenta pessoas que passam por ela. Algumas pedem fotos. Ela abraça, sorri. Abraça, sorri. Abraça, sorri.  Mecanicamente. Volta a sentar, e pergunto sobre seus pais.

          Gracy Kelly diz que é muito ligada à mãe, na casa de quem ela se encontrava nesses dias. Não deixou muito claro se realmente morava com ela ou se estava de passagem, apesar de mencionar uma segunda casa, da qual não deu pormenores. Em um vídeo recente de um programa de televisão chamado “Quem convence ganha mais”, Dona Dilma criticava a escolha profissional da filha, esta se defendia, e cada uma delas, com seus argumentos, objetivava ganhar o apoio do público e cerca de R$2.000,00 da produção. Intrigada, pedi que Gracy Kelly me contasse sobre suas primeiras investidas e trajetória no universo dos bailes funk, da televisão e da mídia da fofoca.
         
          À revelia de sua minibiografia no site wikipédia, que lhe atribui 1982 como ano de nascimento, Gracy afirma ter 27 anos de vida e 17 de carreira. Nesses aproximados 6205 dias, teria ganhado concursos de beleza, atuado como modelo em fotos e propagandas de televisão e se tornado uma das mais populares dançarinas de funk carioca. A mãe tem sido apoio e companheira de jornada, durante todo esse período. Gracy, no entanto, pontua: “Mas, eu sempre gostei dessas coisas. Eu mesma me inscrevia nos concursos, desde pequena".

          É impressionante o início precoce da dançarina. Consideradas as 27 primaveras da moça e seus 17 anos de trabalho, nota-se que ela já aos 10 anos buscava atrair os holofotes. “Você começou cedo”, observo. Ela gira os olhos e retruca: “Ué, e Sandy e Junior?”

          Sobre o pai, não fala muito. Comentou que ele mora nos Estados Unidos e restringiu-se à linguagem corporal para sugerir que não são próximos.

          Nossa aproximação é suspensa pela chegada de William, o motorista, que discretamente entrega à mulher-maçã o cartão de um senhor. Antes de enfiar na bolsa, me encara com o papel entre as mãos e contorce o rosto em esgar intencional. Pouco depois se levanta de seu lugar preferido e segue para uma mesa repleta de mulheres, onde se põe a conversar.

          Abandonada ao lado de William, aproveito para dar início a um diálogo mais profícuo em palavras do que os que tenho tentado manter nas últimas horas. O homem alto, negro e forte, é gentil e tagarela. Em poucos minutos me narrou a vida em São Paulo e a mudança para o Rio de Janeiro. Militar e músico da banda da aeronáutica, após afastamento de suas funções se estabeleceu na cidade carioca. Casado e pai de uma filha, para sustentar a família começou a trabalhar como motorista, servindo executivos, jogadores de futebol e outras celebridades. Por toda a noite, enquanto pequenos pedaços reluzentes de pano que imitam roupas passavam pelo camarote, ele apontava e nomeava vários de seus clientes.

          Vejo Gracy Kelly circular pelo ambiente e meus olhos são mais uma vez hipnotizados pelo seu derriére. A curiosidade feminina é aguçada pela maledicência do pequeno demônio ao meu ouvido. Inúmeras vezes a moça sustentou em entrevistas que é natural sua exuberância, mas a visão à minha frente e uma dose de leviandade me impedem de aceitar o fato.

          Ela torna a sentar. Blasé, anuncia um convite recebido para madrinha de bateria de uma outra tradicional escola de samba e me pergunta em que grupo eles estão. Afirmo desconhecer e ela dá de ombros. De repente, esclarece que não aprecia muito o carnaval e que aceitar convites de escolas para desfilar seria algo como uma troca de gentilezas, algo que faz por gostarem dela. Anoto mais um item na inverossímil lista de desprazeres de Gracy Kelly, a qual inclui  praia e baladas.

          Com o cair da noite, estrelas brilham no céu, enquanto  pessoas vestidas e travestidas  brilham nos camarotes e na quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel. O celular da musa cuja escola de samba em 2012 renderá homenagem a Cândido Portinari não para de tocar. É o namorado que liga pela enésima vez. Ela torna a repetir onde está e lembra que a bateria do aparelho está acabando. Nesse momento tenho um vislumbre de uma Gracy Kelly mais voluntariosa. Ela determina ao moço que este deve voltar para  casa, ainda que esteja ela mesma várias horas atrasada em relação ao momento marcado para o encontro dos dois, estabelecido na primeira da série de ligações. O comportamento caprichoso da moça se manifesta em pelo menos duas outras ocasiões.

          Logo mais ocorreria a coroação da rainha de bateria, uma atriz, esposa de um conhecido diretor de televisão. O camarote que à tarde estava praticamente vazio, com o passar do tempo é tomado por uma multidão de convidados, fotógrafos e jornalistas. Um grupo de organizadores do desfile se aproxima e um deles resolve tratar de alguns detalhes com a mulher-maçã. Avisa sobre um ensaio técnico agendado para o dia seguinte e informa que Gracy deverá desfilar sobre um carro alegórico, já que o número certo de musas ao chão já havia sido definido.

          Demonstrando, mais uma vez, o temperamento tenaz, ela terminantemente recusa a posição: “Não dá para sambar”. Argumenta com polidez, mas transpira contrariedade. Quando o rapaz se afasta, mais uma vez queixa-se do concerto religioso perdido.

          Câmeras a postos, a atmosfera do lugar muda. Esses objetos se traduzem em verdadeiros portais para o mundo encantado das matérias em jornais, revistas e páginas da internet, e boa parte dos ali presentes disputa passaportes. Não só roupas e sapatos chamam a atenção. A partir desse momento, os mais largos sorrisos se abrem, todos se adoram, os olhos se agitam, pessoas se abraçam, param para fotos em trejeitos ensaiados que simulam poses de passistas durante desfiles de carnaval.

          Nesse contexto, as fronteiras bem definidas que separam celebridades em classes são rompidas e por alguns minutos a ex-namorada do ex-jogador de futebol se torna pessoa próxima da moça que está todas as semanas em um programa de mexericos de um canal de televisão, e esta, por sua vez, é a melhor amiga do diretor de novelas que está ali acompanhando a mulher.

          Entre uma pausa e outra dos flashes, as moças correm ao banheiro para retocar a maquiagem, acertar os pequenos vestidos, recolher paetês caídos e disfarçar tecidos descosturados. Toda aquela vida observada momentos atrás se esvai, e as pessoas voltam a circular indiferentes. Até que o fotógrafo de uma revista famosa faz o convite, como se erguesse uma taça indicando o recomeço da festa, e todos reencarnam seus papéis.

          Seguindo o modus operandi dos demais, Gracy Kelly levanta graciosa e, cortês, cumprimenta um a um os presentes e se deixa fotografar. A despeito da simpatia, ela está desconfortável. Ciente da coroação da rainha naquela noite, ela havia optado por um dress-code mais recatado do que aquele a que está acostumada a recorrer em eventos dessa natureza. “Em um casamento as madrinhas não devem ofuscar a noiva”. A contragosto, observou que as outras musas não conheciam ou não se importavam com a tal regra de etiqueta.

          Saio de meu ponto de observação para olhar o palco, no caminho esbarro em Gracy Kelly e experiencio sua segunda manifestação de capricho. Ela me pede fotos com o diretor de TV, mas determina que eu devo avisá-lo. A timidez e o embaraço me impedem de dar um passo à frente e recebo um cutucão no ombro e uma careta. Passo por um momento de perplexidade, mas sigo adiante. Em frente ao homem, estaciono. Dezenas de pessoas se amontoam junto a ele. Evito a linha de tiro dos fotógrafos. Um apertão no braço e um “vai logo” me indicam a passagem do tempo.  Com um meio sorriso peço para fotografar e em segundos a dançarina está ao lado do diretor. São três cliques ligeiros e ela desaparece em meio às pessoas, depois de se certificar do enquadramento das fotos.

          Quase duas da manhã, percebo que mais uma vez ela me disse “não” sem mover os lábios. No começo da tarde, o plano era:  duas horas de presença na quadra e uma entrevista em algum lugar mais tranquilo. Entre tantas questões preparadas, uma em especial seria o ponto alto deste perfil.

          Em novembro deste ano, uma escritora árabe pós-feminista, Joumana Haddad, esteve no Brasil durante uma Festa Literária e fez uma comparação curiosa. “Mulheres de burca e mulheres-frutas são o mesmo, ambas são oprimidas pelo patriarcalismo”.

          Meu intuito era contar isso à mulher-maçã e ouvir sua opinião. Ela não quis. E eu, fui oprimida por sua voluntariedade. 

*Texto feito entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012

domingo, 10 de junho de 2012

Apna dil tum may hay: Meu coração está com você


“Ninguém consegue permanecer indiferente ao Paquistão. É como um divisor de águas: de um jeito ou de outro. Ou estrangeiros o rejeitam de pronto: sem casas noturnas, sem danças, sem diversão; mulheres são dificilmente vistas nas ruas, sem sorrisos; ou o Paquistão os domina e se torna um fator para o resto de suas vidas.
O Paquistão é um país de extremos. Tem as montanhas mais altas e os mares mais profundos. Tem as planícies mais férteis e os maiores desertos. Nele existem paisagens de aparente esterelidade lunar de onde vêm as frutas mais suculentas. Há neve, e 150 dias de calor ininterrupto por ano. Conhece os Sete anos de Seca – assim como as enchentes das monções que inundam milhares de vilas todos os verões. É casa de uma massa cada vez maior de famintos, assim como desses que são – ou tem se tornado – excessivamente ricos; os maiores materialistas próximos aos mais devotos, almas místicas aos montes. Pode mostrar a face da imensa tolerância e, no minuto seguinte, a careta do ódio mortal. Possui os mais estritos código de honra e regras religiosas e comete os mais hediondos crimes.
Não é um país para “pesos leves”. Pense nas majestosas montanhas do Himalaia sobre cujos pés o país se espalha: este é o ânimo. Mesmo a sua beleza é solene e poderosa.” (Karin Mittmann & Zafar Ihsan)

  

            Talvez um complexo, daqueles estudados pelo pai da psicanálise e seus discípulos, possa explicar a origem da tamanha fascinação, que vi despertada na infância, por países longínquos e esquerdos, de idiomas vasconços e de culturas tão herméticas quanto inusitadas.        
Cresci apaixonada pelo meu pai, por seu caráter, por sua inteligência e por sua generosidade. O fato de o homem nunca ter saído do país não impediu que sua mente viajasse através da literatura, da música e do cinema. Não é preciso sair de seu mundo para aprender a tolerância. Por mais que conhecer lugares novos seja “fatal para preconceitos, para o fanatismo e para mentes estreitas” (Mark Twain), algumas pessoas se tornam capazes de compreender o outro através do mero exercício do auto-conhecimento e da compaixão.
            Na ânsia de me fazer amada, e especial em meio a tantos filhos, observava atentamente suas ações, absorvia tudo o quanto dizia, estudava suas atitudes e interesses, e buscava reproduzir seu comportamento. O maior dos prazeres era ter meu esforço reconhecido, não só pelo meu pai, mas por todos os que nos cercavam. Nesses momentos, eu era realmente filha dele.
            Espiritualizado, lia avidamente sobre culturas orientais e suas práticas. Foi através de suas palavras e de seus livros que conheci o Japão budista, a Índia hindu de Gandhi, os monges tibetanos, técnicas de meditação e yoga, e tantos outros personagens e elementos característicos do leste do mundo. Foi ainda na infância que tracei o plano: tão logo me tornasse adulta e ganhasse meu próprio dinheiro, levaria meu pai em uma viagem só nossa pelo Oriente. Iríamos ao Nepal, meditar em uma daquelas cavernas nas montanhas, descritas nos livros que ele guardava.
            Os anos passaram, e a paixão que eu sentia por aquele homem se transformou em amor. Superei algumas de minhas visões tipicamente freudianas sobre a relação pai e filha, vislumbrei sua humanidade, e deixei que a ideia infantil da viagem em conjunto se transformasse em uma doce lembrança. Somente algo permaneceu imutável, a curiosidade que meu pai ajudou a despertar pelo diferente.
            Ele jamais saiu do Brasil, e hoje tenho dúvidas se algum dia o fará, entre as alegações, falta de tempo e condições financeiras, mas creio mais em um misto de receio e desinteresse. Ele há muito se satisfaz com a narração dos filhos, que vez ou outra vão pelo mundo, provocados pela abertura de mente que ele nos proporcionou quando crianças.

Austrália: Meus primeiros Paquistaneses

            Em meados de 2001, aos vinte anos de idade, pelo telefone, recebo um convite.
Estava em Sydney, Austrália, havia cerca de um mês. Ainda desbravava o lugar e não conhecia muitas pessoas além daquelas que ajudaram no processo de instalação da minha família no país. Minhas aulas não haviam começado e me sentia entediada e insegura em casa, enquanto meu padrasto trabalhava – ele fora transferido por dois anos para uma filial de sua empresa em Sydney – e minha mãe fazia do apartamento que vivíamos um lar. Navegando na internet, buscava brasileiros com os quais pudesse me comunicar, e que estivessem por lá. Queria amigos. Sair sozinha não era uma opção. Curiosamente não encontrei de pronto compatriotas, mas um rapaz abriu em minha tela de computador uma janela de conversa. Falamos brevemente, hoje já não me recordo mais o que, mas lembro que insistiu para que eu lhe desse meu número de telefone. Não fosse o tédio e a curiosidade, eu teria seguido as regras de segurança que ditam jamais relatar a um estranho qualquer informação pessoal.
O moço se chamava Tanvir, soava gentil e educado, era engraçado e me chamou para sair. Antes da negativa – dar o número de telefone já havia sido um excesso de minha parte –, me senti compelida a perguntar-lhe a origem. Na Austrália, um país mais jovem que o Brasil, todos são imigrantes. Ele respondeu: “Nepalês.”
Às 20h de um sábado, Tanvir tocava a campainha do meu apartamento e pedia permissão à minha mãe e padrasto para me levar para jantar. A situação toda era esquisita e anacrônica. Apesar de jovem, era adulta e estava acostumada a apenas comunicar à família os lugares a que estava indo e, algumas vezes, com quem estava indo, prescindindo da autorização ou não dos meus pais. Mas, havia a singularidade da situação: estava em outro país, saindo só pela primeira vez, com uma pessoa que não conhecia e que se dizia nepalês. Minha mãe, que nunca se interessara pelos livros do meu pai, contorcia o rosto um tanto desesperada quando me questionava: “Mas o que é um nepalês?”
            Na verdade, eu mesma sabia muito pouco sobre o que era ser um nepalês. Não mais do que havia lido em livros sobre meditação e revistas de viagens. Até então, imaginava que Nepal e Tibete fossem uma coisa só. Assim, era difícil explicar pra minha mãe o que era aquele rapaz pequeno, de olhos amendoados, olheiras profundas, dedos afilados, cabelos lisos e negros e pele azeitonada. Só mais tarde, bem mais tarde, eu pude dizer quem e o que ele era.
            Tanvir se tornou meu melhor amigo durante minha vida de expatriada. Era doce e delicado, engraçado e cheio de segredos. Muitos anos depois, quando já havíamos perdido contato, descobri que não era nepalês, era na realidade bengali. Nunca entendi ao certo suas razões para a mentira, mas especulo que tenha qualquer coisa de intuitiva sua resposta no dia que primeiro nos falamos por telefone. Talvez tivesse sido honesto em relação à sua origem e não tívessemos nos tornado tão próximos. Ele me disse o que eu queria ouvir para poder me oferecer o que eu precisava, amizade. É assim que vejo hoje a questão.
            Sydney tem uma boa parte de sua população composta por asiáticos, que migraram em massa para a Austrália por volta dos anos 70. São chineses, japoneses, indianos, paquistaneses, bengalis, entre outras nacionalidades.
            Em minhas aulas de inglês, éramos uma brasileira e 11 sul-coreanos. Durante os intervalos eu escutava as conversas, presenciava as confraternizações, enquanto tentava fazer a leitura corporal dos meus colegas e entender minimamente o que se passava. Uma das coreanas se tornou minha amiga. O nome, impronunciável, cedeu lugar ao apelido inglês Sunny, “Ensolarada” em português. O substantivo-adjetivo dizia muito sobre a menina pequena de olhos puxados. O pai havia ficado na Coreia do Sul e de lá providenciava o sustento dela, da mãe e da irmã, que tentavam se ajustar sozinhas a um novo país, de cultura e língua bastante complicadas para elas. Apesar das dificuldades rotineiras, Sunny era alegre e otimista. O sotaque carregado e as dificuldades em pronunciar palavras para as quais a musculatura dos lábios e da língua não havia sido trabalhada, faziam nossos momentos juntas oscilarem entre a diversão e a frustração. Às vezes, passávamos longos minutos tentando nos decifrar e muitas vezes, sem falar palavra, sorríamos cúmplices ao compartilhar um mesmo pensamento.
            Meses após minha chegada à Austrália, Sunny me liga contando uma novidade, estava namorando um rapaz e queria muito que eu o conhecesse. Combinamos uma tarde à beira da baía, na região portuária de Paddington, em frente à uma famosa barraca de tortas apimentadas de carne. Fui encontrar o casal na companhia de Tanvir. Sentados na calçada, com as pernas balançando sobre as águas, conversávamos enquanto o sol partia. O namorado novato faz então um comentário, marcando aquele momento: “Vocês se deram conta de que somos todos diferentes? Um libanês, uma coreana, um nepalês (bengali) e uma brasileira, juntos aqui!?” Não tenho lembrança das palavras exatas usadas por ele, mas a questão era essa, mais ou menos solenemente apresentada. E ao tomar consciência da verdade do que ele dizia fui invadida por imensa sensação de prazer, que se repetiu ao longo dos anos em cada vez que entrei em contato com uma cultura, uma língua, uma religião ou um modo de pensar diverso.
            Durante todo o período que permaneci em Sydney, Tanvir foi meu companheiro. Através dele conheci realidades as mais diversas da minha e me abri para a compreensão de mundos além do meu. Acompanhei seu sofrimento quando do ataque em 11 de setembro, mas por conta de suas omissões e da minha visão limitada dos fatos, não entendi em sua totalidade o significado daquele turning point na vida dele e de milhões de pessoas ao redor do mundo. Como mais tarde descobri, Tanvir que não era nepalês – até hoje não sei se algum dos seus familiares o era – , havia nascido em Bangladesh. Seu país, após a partilha da Índia, passou a se chamar Paquistão Oriental, de população majoritariamente muçulmana e, mais tarde, tornou-se independente, assumindo nome próprio. Após a queda das torres, viu-se crescer o sentimento islamofóbico ao redor do mundo, mais ou menos justificado pela morte dos milhares de inocentes vitimados no atentado. Por conta disso, ainda outros inocentes passaram a sofrer em decorrência do ato fundamentalista. Os próprios muçulmanos, uma imensa massa de gente que nenhuma relação guardava com o ato extremo, passaram a ser vistos sob suspeita e a enfrentar o rancor de boa parte da população mundial.
            Entre tantas novidades e descobertas, passei mais ou menos alheia pelos eventos que punham o mundo em turbulência naquele período. Na mesma época, em um passeio pela praia, vislumbrei do carro um grupo de pessoas vestidas de branco dos pés à cabeça. O que trajavam se assemelhava a um pijama, enquanto que na cabeça traziam um pequeno chapéu ajustado ao crânio. Falavam alto, uma língua dura e difícil. Fiquei bastante impressionada e Tanvir me explicou que eram paquistaneses. Imediatamente os associei à imagem recorrente na mídia, após o 11 de Setembro, do velho barbudo e diabólico, e tive medo.

Brasil: Mulheres que amam Paquistaneses

            Alguns anos mais tarde, já de volta ao Brasil e à rotina de estudos e trabalho, passei a pesquisar continuamente sobre países asiáticos. Minha lista de contatos em redes sociais só crescia em função do número de pessoas das mais variadas origens que eram pouco a pouco adicionadas. Gente da Índia, Singapura, da Turquia, Indonésia e Paquistão.
            Minhas manhãs de sábado eram passadas em conversas com um paquistanês de Lahore, a capital da província paquistanesa de Punjab. Com ele aprendi um monte de coisas sobre o país, sobre a cultura e modo de vida paquistaneses. Aos poucos, a associação entre o terrorista Bin Laden e os homens de branco que eu havia visto na praia australiana ia se desvanecendo.
            As diferenças culturais e religiosas me intrigavam. Islamismo, Ramadã, gerações de uma mesma família morando juntas, casamento arranjado, abstinência sexual e alcóolica, comida halal, mulheres cobertas, poligamia, eram temas recorrentes e controversos que me custavam horas de debate com o amigo lahori. Enquanto eu me esforçava para entender casamentos realizados sem paixão e sem amor, ele se recusava a aceitar minhas justificativas para o grande número de divórcios deste lado do mundo. Enquanto eu desdenhava de seus programas de fim de semana: pepsi-cola com amigos, homens, em saguões de hotel; ele eriçava os cabelos diante das minhas narrativas de baladas com amigos, homens e mulheres, sempre, ao fim, assumindo o compromisso de rezar pela minha alma para que minha escala no inferno não fosse duradoura a ponto de comprometer minha felicidade eterna.
            No segundo semestre de 2008, decidi sair de férias. Uma das minhas melhores amigas havia casado há um ano e estava morando nos Emirados Árabes, em Dubai. Sem objetivos definidos, me convenci a ir visitá-la. Quando contei a novidade ao amigo paquistanês, fui logo intimada a estender meus planos e passar alguns dias em Lahore, para nos encontrarmos e ele poder me mostrar in loco um pouco de tudo aquilo que há anos ele me apresentava. Obviamente ri do convite, afinal, sempre fui aventureira, mas não suicida. Naquele ano o Paquistão estava em polvorosa, forças contrárias tentavam derrubar o ditador no poder, enquanto homens e bombas explodiam por todo o país matando centenas de pessoas em retaliação à política do governo autocrático, de apoio irrestrito aos norteamericanos em sua “guerra ao terror”.
            Declinei do convite, para a tristeza do meu amigo, mas fiquei inquieta. Alguns dias pensando e concluí que realmente queria ir até lá, imaginando se haveria algum modo seguro de fazê-lo. A oportunidade era ideal. Lahore ficava a apenas três horas de voo de Dubai e eu teria tempo suficiente para me dividir entre os dois lugares se eu quisesse.
            Diante da nova possibilidade, comecei a investigar maneiras de chegar ao Paquistão e poder circular com relativa segurança. E me questionava se haveria brasileiros no país com os quais eu pudesse me comunicar e buscar mais informações. Para meu choque e surpresa, localizei um número razoável de pessoas, todas elas mulheres, brasileiras, em relacionamentos com homens paquistaneses. Um grupo heterogêneo de moças cujo ponto em comum era a origem de seus maridos e namorados. Aproximei-me de Cintia, que morava em Lahore com o marido e estava grávida da primeira filha. A curitibana, descendente de japoneses, havia conhecido o paquistanês pela internet, se apaixonara e abandonara a vida estável no Japão para viver o amor em outra terra estrangeira.

Dubai (2008): Contagem Regressiva

            Aterrissei em Dubai fim de outubro de 2008. O ar quente e denso à porta da aeronave entregava o imenso deserto a partir do qual se erguera o rico emirado. O alívio após longas horas de voo sobrepujou o cansaço e eu competia em sorrisos com a amiga querida que me aguardava no desembarque. A mulherzinha baixa e de voz estridente, acostumada ao controle daqueles a quem tinha afeto, apontava o dedo e rosnava, amaldiçoando meus planos de ir ao país vizinho.
Superexcitada pelas luzes e imagens ao meu redor, eu mal percebia suas feições e os sons das palavras. Homens robustos e morenos, com caras de poucos amigos, metidos em vestidos brancos, andavam agitados. O adereço da cabeça me remetia às paginas dos cadernos de política internacional e programas de TV onde havia visto imagens do antigo líder palestino Yasser Arafat. Mulheres de sobrancelhas longas e bem marcadas, olhos delineados e perfil encantador, vestidas em trajes negros que lhes cobriam todo o corpo também circulavam pelo ambiente, como contraponto ao colorido das vestes indianas e paquistanesas espalhadas em pequenas aglomerações por toda a área do terminal aeroportuário.
            Do estacionamento do aeroporto à casa da minha amiga, somente alguns minutos. E os dias voaram até a semana em que eu própria voaria novamente. Nesse meio tempo, programações turísticas em Dubai, pragas de amigos brasileiros, promessas de deserdação por parte da minha mãe e um princípio de pânico frente aos ataques que se intensificavam no Paquistão. Ninguém queria que eu fosse até lá, meu amigo paquistanês começava a se preocupar e o meu bom senso já se encontrava em estado de alerta.
            Cerca de um mês antes da minha viagem, terroristas tentaram ultrapassar a portaria de um dos maiores hotéis de Islamabad, a capital federal do país, dirigindo um caminhão-bomba. Bloqueados na entrada, explodiram em frente ao lugar, matando cerca de 60 pessoas, ferindo 200 e destruindo toda a fachada.
            Ciente dos perigos que corria, tentei minimizar os riscos. Pedi à nova amiga, Cintia, que localizasse em Lahore um hotel pequeno em área segura, para que eu pudesse me hospedar, desconhecido e irrelevante o suficiente para pretensos terroristas.
            A dois dias da partida para Lahore, agendei um encontro com Umair, o marido de Cintia, que coincidentemente se encontrava em Dubai. Pretendia resolver um problema burocrático de vistos que poderia impedir a minha ida ao Paquistão, ou meu retorno posterior aos Emirados. Ele conhecia os trâmites para a regularização da minha situação e iria me ajudar. Marcamos em um café, numa área em Dubai que é comparada por brasileiros à rua paulista “25 de março”.
Às 9h da manhã do dia acordado, sob protestos da minha anfitriã temerosa pelo meu encontro com um “desconhecido”, me dirigi ao lugar combinado, tomando o cuidado de ir trajada conforme as determinações da religião islâmica: um longo vestido marrom, ignorando o calor de quase 40 graus, um cardigã bege, e longo xále da mesma cor cobrindo braços e colo. Dois homens me aguardavam. O primeiro alto, jovem e magro; o segundo, mais baixo, mais velho e gordo. Ambos de pele escura e os olhos negros afundados em olheiras. Quando olharam em minha direção, sorri e acenei. Nos cumprimentamos com um movimento de cabeça, sem beijos, apertos de mão, ou qualquer outro contato físico a que ocidentais, em particular latinos, estão tão acostumados. Entramos em um carro, os dois na frente eu no banco de trás e seguimos em direção a Sharjah, um dos outros sete emirados que compõem o país, irmão mais pobre e desprovido de beleza quando comparado a Dubai.
Rodamos deserto adentro, com pequenas paradas pelo caminho, em terrenos baldios não tão baldios. Filas de tratores e homens ocupavam pequenas e médias áreas muradas de areia. Os últimos, em sua maioria, tinham a pele curtida pelo sol; os velhos usavam turbantes grossos e encardidos cobrindo as cabeças e muitos dos mais jovens uma espécie de saia, sarong, semelhante às “cangas” usadas por brasileiras na praia.
Umair, o homem jovem e alto, então se dirigiu a mim e explicou: ele e o homem gordo, seu cunhado, tinham uma empresa na área de construção em Dubai. Negociavam máquinas e mão-de-obra com empreiteiros da Europa, dos Estados Unidos e do Oriente Médio. Enquanto seguia para a casa deles, como convidada para o almoço e jantar, parávamos de tempos em tempos pelo deserto, para que eles cuidassem do seu comércio.
Quando finalmente chegamos em Sharjah, já estávamos há quase duas horas em deslocamento. Não é um lugar feio, mas muito mais simples e conservador que Dubai. A tolerância aos hábitos ocidentais é menor, não é comumente frequentado por turistas, as roupas são mais largas e mais longas e veem-se menos mulheres nas ruas.
Observando as ruas de Sharjah, percebi uma grande concentração de asiáticos. É para esse emirado que migram paquistaneses, indianos, filipinos, indonésios, malaios e tantos outros que trabalham no setor de serviços em Dubai. Viver em Sharjah é mais barato, e regras mais conservadoras garantem a paz de espírito eventualmente perturbada no contato diário com os ocidentais.
Eu já me sentia livre da apreensão que me acompanhara por todo o caminho e já considerava Umair e Musharraf dois grandes amigos. Antes de chegar em casa, fomos a um shopping local para comprarmos o almoço da família. De lá percorremos menos de um quilômetro por vias arenosas – em Sharjah só há pavimentação nas áreas centrais – e estacionamos em frente a um prédio antigo, de três andares, sem portas e elevadores. Subimos alguns lances de escada e paramos em um andar onde duas ou três portas abertas, lado a lado, permitiam ver pequenos apartamentos. Um deles era de Musharraf e Sadia, cunhado e irmã de Umair.
Na pequena sala, uma menina por volta dos seus oito anos se inclinava sobre um dos braços do sofá, enquanto um velho de barba longa e laranja segurava um livro negro e grosso e se dirigia a ela. Não tive tempo de ensejar um cumprimento, Umair me arrastou para o único quarto da habitação e pediu que aguardasse até segunda ordem, fechando a porta. Fiquei desconfortável, mas logo Sadia entrou e explicou que sua filha estava tendo aulas religiosas na sala, pediu com gentileza que eu aguardasse que logo iríamos almoçar.
Meia hora depois eles me colocavam à mesa. Não havia jantado na noite anterior, nem tomado café pela manhã. Acreditando piamente que meu corpo estava em processo de autofagia, foi com prazer glutônico que encarei o sanduíche e as batatas fritas à minha frente. Sem muita discrição e nenhuma delicadeza, avancei sobre os pratos, quando fui tomada por uma sensação desagradável de que estava sendo observada. Levantei os olhos da comida e fui surpreendida por uma câmera digital me focalizando e paralisei. Diante de minha confusão, uma Sadia envergonhada justificou: “minha mãe estava curiosa para ver a visita, então, se você não se incomoda, ela pode observar enquanto você come?”
Acenei para a câmera e constrangida finalizei a refeição. Depois fui à frente do computador ver quem era que me espiava. Do Paquistão, uma matrona simpática, envolta em véus coloridos, sorria de orelha a orelha diante da estrangeira comilona. Em um inglês incompreensível, traduzido pelos filhos, dizia que me aguardava no país e que eu era bem-vinda em sua casa.
Uma criança minúscula passa correndo pelo quarto, emitindo grunhidos ligeiros que só a mãe compreendia. Chorava e mostrava os dedos de alfinete. As vizinhas indianas comemoravam o Diwali, uma festa religiosa hindu, também chamada de Festival das Luzes. Em celebração, acenderam velas por todo o apartamento e no hall de entrada. A pequena arteira, curiosa por conta da iluminação, tocou o fogo, queimando as mãozinhas. Sadia mencionou o fato e me arrastou para conhecer as amigas. Ignorando a sangrenta partilha ocorrida no território indiano há mais de 60 anos e que até hoje produz frutos de discórdia entre os povos da Índia e do Paquistão, ela sentou confortavelmente entre duas jovens hindus e se pôs a tagarelar. Uma mulher mais velha foi até a cozinha e voltou com uma bandeja de biscoitos em formato de estrela e copos cheios de um líquido cor-de-rosa. Fui instada a provar os biscoitos e aquilo que julguei ser leite e morango em pó. Ao virar o copo, dezenas de macarrões transparentes inundaram minha boca e o líquido perfumado irritou minha língua. Tentando disfarçar a repulsa, empurrava com os dedos os macarrõezinhos pendurados nos lábios de volta ao copo, enquanto com esforço engolia os que estavam na boca, sem mastigá-los. Sadia percebeu meu embaraço e me resgatou, tirou o copo das minhas mãos e avisou que tínhamos que ir. Rindo no caminho pelo corredor, confessou: “Também não gosto muito de leite de rosas.” Fiquei chocada diante da constatação de que as indianas bebiam cosméticos – mais tarde descobri que não se tratava do mesmo leite de rosas industrializado, e sim de água literalmente extraída de rosas e depois adicionada ao leite para dar sabor – e quis saber dos macarrões. Chamados de faluda, são feitos de gelatina e comumente utilizado em doces populares no subcontinente indiano.

eu e a pequena dos dedinhos de alfinete

A tarde já avançava quando pedi a Umair que me levasse a uma lan-house. Precisava verificar alguns emails. O dia estava quente e eu transpirava sob os inúmeros panos que me cobriam. Para meu alívio, entramos em uma lojinha com ar-condicionado. Um ambiente notadamente masculino, onde minha chegada causou curiosidade e algum desconforto. Umair me apontou uma cabine mais reservada e distante dos grupos de homens e sentou próximo ao computador ao lado do meu. Passei a ler e responder emails, quando ouvi o ar-condicionado desligar. Longos minutos se passaram e o calor começou a me angustiar, e novamente o barulho do ar-condicionado. Alívio. Mais alguns minutos, e o ar-condicionado para de funcionar. Tempos depois, a volta do ar frio. Logo após, novo desligamento. Quando me dei conta do “liga e desliga”, comentei com o Umair que o aparelho deveria estar com algum problema. Ele gargalhou ao me explicar que era tão-somente o dono do estabelecimento tentando economizar energia elétrica. Advindas de países como a Índia e o Paquistão, onde energia elétrica contínua é um bem raro e caro, algumas pessoas tinham desenvolvido estratégias próprias de racionamento de eletricidade e economia.
Da lan-house fomos a um café ao lado de uma mesquita em Ajman, um terceiro emirado. Enquanto tomávamos chá e fumávamos shisha, um costume local, Umair me falava da situação política no Paquistão. De uma família socialmente ativa no país, Umair teve dois irmãos assassinados em disputas de poder. Vinculado ao PPP – Pakistan People´s Party ou Partido do Povo Paquistanês – era o próximo Malik a tentar posição política na província Punjabi.
Fomos interrompidos pela chegada de Sadia e Musharraf com as filhas, com quem nos dirigimos a um mercado indiano e depois a um restaurante libanês. No cair da noite, fui devolvida à casa da minha amiga, que a essa altura me mandava por celular a centésima mensagem ameaçando contatar a embaixada. Feliz e grata, me despedi da família com a promessa deles de resolver minhas questões de visto e com a promessa minha de confortar a matriarca que me aguardava em Lahore.

Paquistão (2008): Meu coração está com você

            Se o purgatório é quente, o inferno é escaldante. Depois de uma aterrissagem estressante – paquistaneses em um voo são como crianças: não escutam ordens, fazem o contrário daquilo que lhes é solicitado, são ansiosos e sem noção de perigo – pôr os pés naquele chão e sentir o ar escandalosamente quente e seco do Paquistão foi de um prazer indescritível. Abraçar a nova amiga e sua sogra “big brother” e tagarelar ininterruptamente no caminho para o hotel me fez esquecer que eram 4h da manhã e que eu estava exausta após 21 horas em atividade.
            Atendendo meus pedidos, Cintia reservou um pequeno hotel, bem localizado. O prédio era novo e simples. Apenas 3 ou 4 andares, frente envidraçada e decoração agradável. Dois atendentes homens estavam na recepção, preenchi os papéis e fomos levadas ao que seria o meu quarto. O quarto era bem espaçoso, duas camas de solteiro enormes, chão encarpetado, uma penteadeira de madeira, um sofá e criados-mudos completavam a mobília. Eu já tinha ouvido falar da falta de asseio nos hotéis, restaurantes, mercados e em áreas de circulação pública no país, mas nada me preparara para aquilo. Quilos de poeira pelos móveis e em suspensão no ar. Toalhas e lençóis sujos e todos os cigarros do mundo apagados em cinzeiros pelo quarto. Antes que eu me pusesse desesperada, a sogra da Cintia saiu do quarto em direção à recepção, onde reclamava em duro e incompreensível urdu, a língua do Paquistão. Eu não podia distinguir se ela só falava ou brigava. Certo é que, em poucos minutos, minha bagagem foi retirada do quarto e fui levada a um outro, cuja única diferença era a ausência de cinzeiros com cigarros. A Sra. Malik, a sogra, sorriu satisfeita e eu me resignei frente ao fato. Abrimos as malas e eu entreguei à Cintia e à sogra presentes e comida. Às 5h da manhã, elas me deixaram. 

quarto do hotel

           Tranquei a porta, cobri minha cama com xáles, tirei o travesseiro da mochila e resolvi descansar - em quatro horas estaria de pé para um dia que prometia ser cheio. Após enviar uma mensagem de texto ao Yaser, o amigo lahori, confirmando o encontro às 9h da manhã, caí em sono profundo para cinco minutos depois acordar sobressaltada com fortes batidas na porta.
            Levantei tensa e joguei um dos xáles sobre o vestido que ainda usava, abri a porta, e os dois recepcionistas do hotel se encontravam parados, sorridentes, carregando uma bandeja com algo que parecia um coquetel. Em coro, cantaram: “welcome drink”. Apesar de cansada, não resisti aos risos. Aceitei a bebida e me despedi. Fechei a porta e deixei o copo sobre o criado-mudo sem a menor coragem de descobrir do que se tratava. Sabia que no Paquistão bebidas alcóolicas eram proibidas, então nem imaginava o que podia ser aquele líquido amarelado que me fora oferecido. Voltei para a cama e nem bem fechei os olhos, novas e intensas batidas. Assustei-me. Perguntei quem era e em reposta recebi: “Por favor, abra senhora!” Mais uma vez abri a porta, e dois novos rapazes me perguntavam se eu precisava de algo. Azeda, respondi que às 5h e meia da manhã, apenas dormir. Eles se despediram, fechei a porta e voltei pra cama. Resolvi ligar para o Yaser, apesar do horário, para tentar entender o que acontecia, com sono ele foi educado e apenas disse: ignore e não abra mais a porta. Nem tinha desligado o telefone quando ouvi novas batidas e de novo o “Por favor, abra senhora”. Silenciei e eles continuaram, pedi que fossem embora que queria dormir, repetiram a frase de tal forma que imaginei que estariam chorando. Sem desligar o telefone – de alguma forma me sentia mais segura com um amigo do outro lado da linha – fui até à porta e abri. Felizes, dois outros jovens diferentes me entregaram jornais.
Antes que uma procissão de pessoas decidisse que meu quarto era um lugar sagrado, avisei endemoniada que iria dormir e sob hipótese nenhuma abriria novamente a porta e que caso tivessem qualquer “welcome qualquer coisa” para me dar, que por favor me entregassem em pelo menos cinco horas ou que deixassem na entrada, de onde eu retiraria mais tarde.
Enfim, a paz, o sono, o calor. O calor insuportável. O calor realmente insuportável. Dei um pulo da cama, arrancando o vestido. O ar-condicionado parara de funcionar, mexi na lâmpada e ela não acendeu. Ligo na recepção e o atendente me avisa sobre as constantes interrupções de luz no país. Desligo frustrada e procuro a janela. Não há janelas no quarto. Uma cortina pesada de veludo cobre uma parede grossa e embaçada de vidro, sem qualquer mecanismo que permita sua abertura. Esgotada, uma boa ideia afasta o choro. Corro para o banheiro imundo e abro o chuveiro. Entro embaixo da água, gelada para o meu consolo. Sem coragem de usar as toalhas sujas do hotel, me visto encharcada e me deito feliz na cama coberta com xáles.
Às 9h da manhã desperto com o interfone. Era Yaser, pontualmente vindo me buscar para o café. Apesar das poucas horas de sono, me sentia bem e pedi que subisse ao meu quarto, sem me dar conta que este ato, repetido diversas vezes ao longo dos dez dias que fiquei no país, fez os empregados do hotel entenderem que éramos casados, já que a amizade entre homens e mulheres ou namoro são conceitos inexistentes no país, que segrega os gêneros mesmo após o casamento.
Nos cumprimentamos com um abraço, depois de um longo processo de preparação a que submeti o moço enquanto ainda planejava a viagem. Tentei mostrar que não havia sentido em encontrar um amigo de tão longe e não poder dessa forma demonstrar afeto. Defendi que não havia maldade ou segundas intenções no ato. Ele aquiesceu. Tomamos café juntos e andamos pelos arredores.
Yaser tinha 29 anos. Alto e forte, cabelos pretos e fartos, rosto largo e bochechudo, nariz e queixo proeminentes, e olhos emoldurados pelas características olheiras paquistanesas. Costumava reclamavar da pele esverdeada que assumia uma tonalidade ainda mais escura durante o verão e, assim, ele se via preso a tratamentos estéticos, sempre às voltas com cremes clareadores, obsessão cosmética de dez entre dez paquistaneses.
O rapaz era engenheiro químico, mas em decorrência das constantes crises no país, há cerca de quatro anos se encontrava desempregado. Sua situação era espelho de muitas outras situações de jovens formados no país. Estava deprimido e tinha grandes dificuldades em falar sobre o futuro. Sendo assim, passávamos horas falando sobre o presente, ainda que este não fosse feliz ou fácil. Para sobreviver com a mãe viúva, Yaser alugava a porção superior de sua casa por 200 dólares ao mês e dava aulas particulares de química e matemática por três dólares a hora. Mesmo assim, não se atrevia a reclamar muito da vida, em um país onde mais de 85% da população é analfabeta e miserável.
Voltamos ao hotel pouco antes do horário de almoço. Ele precisava ir para casa ver a mãe e trocar de roupa para ir à mesquita. Eu cheguei ao Paquistão em uma sexta-feira, dia da semana em que o trabalho é suspenso após o horário de almoço e em que a tarde é dedicada às orações. Nesse dia, os jovens trocam o jeans pelo shalwar kameez, a roupa tradicional do país, o tal pijama branco que eu havia visto pela primeira vez na Austrália. Nas cabeças de homens e meninos, o chapéu cobrindo cabelos, em sinal de respeito a Alá – como Deus é chamado no Islã. Mulheres rezam em casa, protegidas por véus ou dupattas.
No hotel, eu aguardava um outro amigo, Muzammil, o DJ. O paquistanês cabeludo era analista de sistemas e músico nas horas vagas. Adorava cantar e produzir bandas de amigos roqueiros, à revelia dos críticos de plantão, religiosos que não viam com bons olhos o hobby do moço. DJ era apaixonado por Sehrish, uma paquistanesa de Islamabad, cuja família não aceitava o relacionamento dos dois. Costumavam se encontrar escondidos para fazer planos de um futuro juntos que ainda duvidavam se seria possível. Foi de um desses encontros furtivos que ele chegou a Lahore. Trazia um presente comprado em conjunto, um sino dos ventos, para que quando eu ouvisse o som lembrasse do casal.

eu e Dj

Ao sairmos do quarto para ir à rua, fui surpreendida pela presença de todos os funcionários do hotel, que resolveram almoçar no chão do hall do meu andar, bem em frente ao meu apartamento. Ao abrir a porta, dei de cara com o olhar de cerca de 15 homens curiosos, que nos convidavam para almoçar.
Resolvemos comer em um Mac Donald´s. O fast-food era uma solução segura para um paladar conservador como o meu. Mas, nem tão segura como eu imaginava. Pedi um Bigmac, sanduíche tradicionalmente feito com hambúrguer de bife. Para minha surpresa, no lugar da carne vermelha, hamburgueres de frango altamente apimentados. “Mas, eu pedi Bigmac normal!” DJ balançava a cabeça, sorrindo: “O Bigmac normal aqui tem carne de frango e pimenta, você tinha que ter pedido um especial de bife, sem tempero!”

McDonalds,com  seus detectores de metal
e muita pimenta

Caminhando de volta ao hotel, descobri que precisava ir ao banheiro, depois de quase 1 litro de coca-cola para amortecer a língua. Paramos, então, em uma galeria de tecidos. Após passar por uma sequência de detectores de metal – que estão por toda parte, na entrada de todo e qualquer lugar aberto ao público em Lahore – um segurança nos apontou o toalete feminino. Tomada daquela sensação de incontinência que acomete pessoas “apertadas” quando elas se aproximam do banheiro, saltei à distância uma velha deitada no batente da porta e estanquei incrédula diante do buraco aberto à minha frente. Não havia vasos sanitários no banheiro. Só buracos e buracos, uns aos lados dos outros, separados por paredes finas, com pequenas jarras de água no canto. Senti a vontade de usar o banheiro imediatamente passar e voltei às gargalhadas para onde me esperava DJ. Expliquei que não fazia ideia de como “usar” os buracos e questionei a existência de banheiros com vasos. Ele descobriu um deles no último andar. Enquanto subíamos, as luzes se apagaram, a escada rolante travou e eu, em pânico, agarrei Muzammil. Absurdamente constrangido, ele sussurrava: “Pode me soltar, só acabou a luz, não é um ataque terrorista”.
Ao entrar no banheiro, verifiquei que não havia papel higiênico em nenhuma das cabines. Duas meninas conversavam em frente ao espelho e perguntei se elas sabiam onde eu poderia conseguir papel. Sem compreender elas me perguntaram para quê. “Eu pretendo usar o banheiro.” Uma delas me olhou enojada e disse: “Aqui usamos a ducha, é mais higiênico.” Constrangida, tentei consertar: “Mas, e como vocês se secam?” Ao que uma delas replicou: “Naturalmente”.
Na volta ao hotel, pegamos um rickshaw – espécie de moto acoplada à uma mini-carroça, utilizada como táxi em Lahore –, foi só aí que tive a dimensão do trânsito caótico do Paquistão. Automóveis de todos os tipos e idades atravessam as vias sem sinalização, em todas as direções e velocidades. Enquanto isso, dezenas de pessoas, adultos e crianças, atravessam de um lado a outro ruas e avenidas, driblando carros, caminhões, motos, ônibus, bicicletas, camelos e rickshaws, como numa partida de videogame.
Os dias que se seguiram foram felizes e divertidos. Eu já me acostumara à sujeira dos lugares, ao caos e aos olhares curiosos. Entre passeios, conversas e compras eu ia me deixando amar aquele lugar estranho, muitas vezes miserável, mas paradoxalmente lindo, culturalmente rico e habitado por pessoas generosas e amigáveis. Construções antiquíssimas e milenares, inúmeras áreas verdes, mesquistas iluminadas, em contraste com prédios decadentes e em ruínas, uma profusão de fios elétricos e pôsteres de propaganda.
Impressionava-me a circulação restrita de mulheres nas ruas e no exercício de funções de trabalho em hotéis, restaurantes e lojas. Sempre homens por toda parte. O âmbito de influência e lugar de presença das mulheres é o lar. Desde cedo elas são doutrinadas para se tornarem esposas, mães e boas donas de casa. Nisso consiste o mérito de uma mulher. Apenas famílias mais modernas investem em educação e permitem que suas mulheres tenham uma carreira. Um bom casamento é, na maioria das vezes, motivo de orgulho maior do que um sucesso acadêmico ou profissional. E isso se reflete na pomposidade das bodas.
Eu estava na casa Cintia, com Umair, aguardando a sogra para irmos a um centro de compras. Ela entra no carro carregando dois álbuns grossos com fotos dos casamentos das filhas. A princípio não me dei conta que se tratava de dois casais diferentes, isso porque os casamentos foram arranjados entre irmãos, muito parecidos. As duas filhas da Sra. Malik casaram com dois irmãos, Rana Musharraf e Rana Muqarab. Envaidecida com os meus elogios em relação aos trajes das noivas e decoração da festa, ela lembra de um casamento que acontecia na casa vizinha e me arrasta para fora do carro, no intuito de me levar até lá. Em um calor que deveria beirar os 40 graus, uma menina linda, em um vestido de noiva azul e vermelho, coberta de jóias, estava sentada em uma cadeira, de frente pra uma cama repleta de mulheres que riam alto e cantavam músicas. Ela parecia cansada, molhada de suor e, ao ser cumprimentada por mim, deu um sorriso débil e agradeceu.
Festas de casamentos podem durar dias e, durante este tempo, cabe à noiva ficar sentada por horas em um banco ou cadeira, recebendo os cumprimentos dos convidados da celebração, o que pode se tornar uma tortura caso algum dos familiares decida pela realização da festa no verão.
Para ocidentais o evento pode ser exaustivo e entediante, mas as decorações e os trajes são exuberantes e um espetáculo à parte, a comida é farta, a conversa é boa, e paquistaneses apreciam estes eventos, já que são uma das poucas formas de interação social religiosamente aceitáveis no país.
 Deixamos a pobre moça em meio às hienas cantoras e fomos até o mercado comprar pulseiras de vidro, souvenires tipicamente paquistaneses, que enfeitam os pulsos de todas as mulheres do país. Produzidas artesanalmente, são lindas e sensíveis, se quebram a qualquer pressão. A agilidade e delicadeza das paquistanesas no trabalho doméstico permite que lavem, passem e cozinhem, usando dezenas dessas pulseiras em ambos os braços, mantendo-as intactas até o final de cada dia.

mercado em Lahore


Passando por um beco escuro, próximo de uma área de esgoto, de chão úmido e paredes lotadas de propagandas na língua local, nós logo chegamos a um pequeno agrupamento de barracas onde me deparei com as multicoloridas bangles. Sem saber por onde começar, ia apontando uma a uma as cores dos conjuntos que pretendia comprar, para a satisfação do dono da barraquinha e cobiça de seu assistente. Quando dei por mim, o homem quase desaparecia atrás do balcão coberto por uma infinidade de pulseiras. Nessa hora entra em cena a sogra. Exercendo a função de minha advogada, ela passa a negociar um a um os conjuntos de pulseira, numa disputa de nervos que impressiona. É o divertido jogo da barganha, que eu como estrangeira, não saberia jogar. Os ânimos se acirram, as vozes se elevam e uma infinidade de caretas provam que estou diante de grandes atores. Consigo acompanhar um pouco da história, porque os valores são tratados em dólar e escuto, pouco a pouco, os preços despencarem em função das pressões da Sra. Malik. Saio feliz proprietária de duas caixas cheias de pulseiras, para a satisfação dos vendedores e de minha orgulhosa interventora.

negociando pulseiras com Mrs. Malik

           No retorno ao hotel, paramos em um restaurante a pedido da mãe de Umair. Ela volta carregando pacotes de pão, que logo corta em pedaços servindo a si própria e nos enfiando – a mim, Cintia e Umair – goela abaixo, em pequenas porções.
            Estacionando o carro para que eu descesse, Umair é abordado por duas figuras inusitadas. A Sra. Malik se excita e me faz descer do carro para uma sessão de fotos com ela. Dois travestis, bem maquiados, trajando roupas tipicamente paquistanesas e femininas, abusando de trejeitos coquetes e de frases ambíguas e divertidas. Fiquei assombrada. Nunca imaginei encontrar tais personagens em um país islâmico e conservador, cheio de regras rígidas de conduta para homens e mulheres.

travesti "paquistanes(a)" 

            E foi com a sensação de que o meu tempo era pouco para o tanto de surpresas que o Paquistão guardava que deixei o país, com a expectativa de um dia retornar e descobrir um pouco mais de todo aquele universo, para mim tão alienígena quanto humano.

Dubai (2012): Estou a três horas do meu paraíso

Durante três anos e meio planejei retornar ao Paquistão. Ao longo desse tempo ampliei meus vínculos com o lugar, estudei sua política, sua cultura e sua história. Fiz novas amizades e passei a frequentar as reuniões das mulheres que se relacionavam com paquistaneses, elas apaixonadas por homens, eu por todo o país.
            Decidida a voltar, me dei conta de que muita coisa seria diferente. O país já não era mais uma autocracia, Osama Bin Laden havia sido finalmente capturado, o número de explosões e ataques haviam diminuído bastante e estavam restritos às áreas em guerra, Yaser havia arranjado um emprego, a Sra. Malik já não estava entre nós, Muzammil e Sehrish finalmente casaram (um com o outro) e eu não iria para Lahore, e sim para Islamabad.
            Cheguei em Dubai no começo de fevereiro, revi velhos amigos, fui a clubes noturnos, quase perdi o controle em promoções de shoppings, enquanto me preparava para um período de dez dias no longínquo Japão, antes de pisar em terras paquistanesas.
            Ansiosa eu calculava os dias e as horas para a próxima etapa da viagem, e pensava que estava tão perto, mas logo estaria novamente longe do meu objetivo principal e final, que era voltar ao Paquistão. Pensava nos amigos queridos, nos lugares novos que iria visitar, nos tecidos coloridos, nas pulseiras de vidro, no povo simples e de comportamente, por vezes, engraçado, no chamado para as orações – Azan – que ecoava das centenas de mesquitas espalhadas pelas cidades.
            Estava a três horas do paraíso, mas ia demorar um pouco mais para chegar, porque antes ia encontrar amigos nas distantes ilhas nipônicas.

Japão: “Porque os nossos paquistaneses são mais produtivos”

            Cheguei ao Japão às 17h, depois de um voo de 7h e meia, turbulento da metade para o fim, devido aos fortes ventos, comuns na região. Depois de longas horas de stress, o medo de voar se tornou insignificante, incapaz mental e fisicamente que eu estava de prolongar por tanto tempo os rituais que costumava repetir a cada balanço da aeronave.
            Em Osaka, à perturbação pelas horas de voo instável, somou-se a confusão durante minhas tentativas de compreensão dos textos ininteligíveis em placas por todo o aeroporto. Eu não entendia uma palavra do que via e ouvia e já não tinha forças nem para me irritar. Por sorte encontrei um casal de brasileiros descendentes de japoneses que falavam fluentemente a língua e serviram como intérpretes em um diálogo com a guia responsável pelo ônibus que me levaria à Nagoya.
            Em Nagoya, Melissa e Kashif me esperavam. Eu tinha conhecido Melissa há alguns anos, em um dos encontros de mulheres que amam paquistaneses. Ficaria hospedada na casa deles durante dez dias.
            Melissa é a jovem mãe de uma adolescente e de uma menina de 8 anos, meiga e engraçada, tem os cabelos lisos e negros e olhos levemente puxados, heranças genéticas da família japonesa, mas é encorpada como boa parte das brasileiras, razão pela qual vive em guerra com a balança.
            Kashif, um paquistanês de Karachi, capital da província de Sindh, região portuária e importante centro financeiro comercial do país, mora há vários anos no Japão. Compra e vende automóveis, negócio dominado pelos paquistaneses no país onde são produzidos alguns dos melhores carros do mundo.
            Ao contrário de Dubai, onde a acumulação de riquezas é controlada e mais ou menos restrita aos árabes locais e a alguns investidores internacionais, no Japão, esforço e empreendedorismo são sempre recompensados, e muitos paquistaneses e estrangeiros advindos de partes mais pobres da Ásia encontraram na terra do sol nascente oportunidades de crescimento.
            Muitos paquistaneses acabam casando com japonesas ou mestiças, descendentes como Melissa, que é neta de japoneses por parte de mãe e filha de um brasileiro.
            Em um país não-islâmico como o Japão, os paquistaneses tendem a ser mais tolerantes com hábitos ocidentalizados. Ao mesmo tempo, não se sentem tão deslocados, porque o país apesar de moderno mantém tradições antigas que o tornam mais conservador que outros países laicos.
            Conversando com Melissa, no entanto, ela me relatou vários dramas envolvendo paquistaneses e suas mulheres no Japão. Muitas delas, sem saber, eram esposas de um segundo casamento dos maridos – cuja religião permite a poligamia –, homens desesperados por vistos japoneses ou que se apaixonaram pelas novas mulheres, sem coragem ou caráter suficiente para romper os antigos laços com suas esposas paquistanesas. Alguns deles mantinham por anos as duas famílias até que a bigamia viesse a ser descoberta, muitas vezes tarde demais, quando ambas as mulheres já haviam lhe dado filhos ou a situação deles no Japão já estava consolidada.
            Fato é que a comunidade paquistanesa no país é relevante e produtiva e, pouco a pouco, cede à miscigenação com os japoneses.
            Durante os dez dias que fiquei no Japão, vivenciei a dinâmica de famílias multiculturais, como administram a rotina, os impasses e os acordos. Conheci o lado rural e urbano do país, passando os dias entre Hamamatsu e Tóquio, e senti a harmonia existente entre o velho e o novo, o antigo e moderno, o natural e o tecnológico. Mas, meu tempo por lá terminava e em poucos dias eu retornaria ao Paquistão.

Paquistão (2012): O retorno

            Voltando de Osaka, passei por Dubai exausta, mas precisei de exatos dois dias para me reanimar.
            Pronta para a terceira etapa da viagem, peguei um táxi para o aeroporto cerca de 2h e meia antes do voo. Agradeci a Deus ter chegado tão cedo. Uma fila enorme de indianos carregando caixas gigantes contendo televisões de LED aguardava para o check in. Todos falavam ao mesmo tempo e não fosse tão improvável, qualquer um poderia supor que eram todos parentes, tamanha a intimidade com que berravam uns aos outros, trocavam caixas e malas e deixavam os últimos passarem à frente. Resolvi sentar em um dos bancos e aguardar o fim da fila indiana.
            Já no avião, ao localizar meu lugar, uma mulher completamente coberta chama a minha atenção e pede para que eu troque de assento com o marido que estava sentado em outra fileira. Sozinha, concordei com o pedido e passei para o outro lado da aeronave. Quando já estava sentada, me dei conta de que estávamos próximas, separadas somente pelo corredor. Tive a impressão que sorriu pra mim, mas não pude confirmar porque um véu negro e espesso lhe cobria a cabeça, com duas pequenas aberturas que só permitiam entrever o par de olhos. Senti-me ligeiramente mal ao observar minhas calças pretas justas e o vestido curto cor-de-rosa e abotoei o casaco. O marido era jovem e bonito, vestia uma shalwar kameez bege sob um casaco da mesma cor, usava o chapéu das rezas e uma barba islâmica que ia até a altura do peito.
            O voo foi em boa parte tranquilo, dentro dos limites para um voo lotado de paquistaneses. A decolagem é um sofrimento para comissários de bordo e pessoas com medo de voar, como eu. Com todas os avisos luminosos acesos e o avião ganhando velocidade, ainda havia passageiros teimando em reorganizar malas no bagageiro ou simplemente em pé ao lado de outros, batendo papo como se estivessem em um bar. Durante as horas de cruzeiro, é impossível dormir ou ir ao banheiro. Todas as crianças decidem chorar ao mesmo tempo, mulheres riem e falam alto, homens circulam. Botões de chamado aos comissários são constantemente pressionados por passageiros que sempre querem mais água, comida, e atenção.
A aterrissagem é um desafio à parte. Meia hora antes, o piloto sinaliza o procedimento de descida. Comissários a postos, começam o processo de convencimento dos passageiros, que deverão sentar-se na posição vertical, apertar os cintos e aguardar a chegada do avião ao solo e sua completa parada. Depois de longos minutos de insistência por parte dos funcionários da companhia aérea, todos os passageiros estão posicionados conforme as regras de segurança. Pelos meus cálculos faltavam cerca de cinco minutos para a aterrissagem quando uma paquistanesa magra e alta, em shalwar kameez vermelho, solta o cinto e, como se estivesse apostando uma corrida de 100 metros rasos, percore o corredor até o banheiro sem dar tempo de o comissário interceptá-la. O homem nervoso esmurra a porta e ordena que saia e retorne ao lugar antes que o avião pouse. A mulher ignora. Ele promete arrombar. Um minuto depois, ela sai como se nada tivesse acontecido, segue calmamente para o seu lugar, enquanto o comissário esbaforido retorna ao seu assento, em sincronia com a aterrissagem que ocorre nem um segundo depois.
A visão do aeroporto me emociona. Como o Papa polonês, tenho ímpetos de beijar o chão, mas o bom senso me impede. O que praticado por alguns é ato nobre e solene, por outros pode representar indício de insanidade.
            Era minha segunda vez no Paquistão e a primeira em Islamabad. Novamente, amigos queridos me aguardavam no saguão. A população da capital federal, mais acostumada aos estrangeiros em virtude das inúmeras embaixadas e consulados estabelecidos por lá, não me encarava com tanta intensidade quanto no aeroporto de Lahore. Mishal, Zohaib e a pequena Zahra portavam um cartão com o meu apelido e pareciam felizes em me ver, talvez não tanto quanto eu em vê-los e em retornar ao país.
            Após uma agradável noite de sono, dessa vez sem os percalços da primeira noite em Lahore, acordei com Mishal convidando para o café da manhã. Zohaib tinha ido para o trabalho e ficaria fora até o fim do dia.
            Mishal, que é brasileira e foi registrada Everyn, assumiu o nome islâmico após sua conversão, dias antes do casamento. Maquiadora, trabalhava desde os doze anos em salões de beleza, produção de desfiles e televisão, mas com tranquilidade abriu mão da profissão, assumindo as funções de mãe e dona de casa. Sem grandes conflitos com o marido, ajustou-se à cultura, à religião e ao país.
            Conversamos o dia inteiro e, com a chegada de Zohaib, concordamos em jantar fora e ir até uma bela região de montanhas, conhecida como Margalla Hills, que fica localizada aos pés do Himalaia. Depois de uma ida ao supermercado, onde alguns curiosos nos perseguiam por entre gôndolas, aparentemente atraídos pela língua diferente que falávamos, passamos em uma rede de fast food e compramos sanduíches. Dali, seguimos direto para Margalla, subindo uma estrada cheia de curvas e que não terminava nunca. Depois de vários minutos, chegamos a um dos pontos mais altos, de onde se estendia uma das paisagens mais impressionantes: toda a cidade de Islamabad podia ser vista do alto, abraçada por uma cadeia de montanhas.
            Na descida, paramos em uma cabana para um chai (chá) e, em seguida, uma caminhada. Aflita, observei inúmeras placas que avisavam: Macacos mordem! Zohaib explicou que naquela área existiam vários animais selvagens e as pessoas tinham o hábito de querer tocar ou alimentar os bichos, em particular, macacos. Por via das dúvidas, não quis me distanciar muito do estacionamente, o que foi motivo de risos por parte dos meus anfitriões.

macacos me mordam!

            Dois dias depois, Zohaib nos levou às minas de sal de Khewra, a algumas horas de Islamabad. Atravessamos pequenos vilarejos e logo chegamos às montanhas de sal, cuja descoberta data da época de Alexandre, o Grande. Contam que quando ele passava pela região com suas tropas, notou que os cavalos começaram a lamber o chão. Intrigado, teria se juntado a eles e verificado que as rochas eram salgadas.
            Percorremos cerca de 500m mina adentro, em uma espécie de trem, semelhantes àqueles comuns em parques de diversão, bastante corroído pelo sal e pelo tempo. Descemos próximos à uma mesquita de sal, construída no interior da mina, que quando iluminada, dava a impressão de arder em fogo, assumindo variados tons de laranja. Outras construções, tão ou mais impactantes, se espalhavam pelas minas, que se comunicavam por túneis, escadarias e pontes suspensas sobre profundos lagos de água salgada.

Mina de Sal, Zohaib e Zahra

            Deslumbrada com o que eu tinha visto até então, estava ansiosa com a próxima etapa de nossa programação: um passeio pelas ruínas do templo hindu Katas Raj. Eu tinha visto fotos e o lugar parecia belíssimo, mas para minha frustração, no dia exato que lá estávamos, o sítio estava fechado para peregrinos hindus e vetada qualquer visita. De longe eu avistava as ruínas, mas nem um sinal dos lagos de água transparente que circundam o templo.

o templo não visitado :(

            Nos dias seguintes, enquanto Zohaib trabalhava, Mishal e eu carregávamos a pequena Zahra em nossos passeios por comércios nas redondezas. Já começava a me perturbar a dependência da presença da um homem para que pudéssemos ir à outras partes. No Paquistão, mulheres não costumam andar sozinhas e dificilmente são vistas nas ruas das cidades. Na volta de um desses passeios, observei em frente a um quarteirão com bancos uma fileira de táxis. Em um deles, um papel na janela anunciava em inglês os contatos do motorista, que vendo meu interesse, logo se aproximou. Discutimos valores e sua disponibilidade e, depois de alguma barganha, comprei nossos passaportes para a liberdade. Seu Nawaz, o motorista, nos buscaria pela manhã para nos levar ao banco e ao mercado.
            Pontualmente, à hora marcada, o homem tocou a campainha da casa. Pequeno e franzino, Seu Nawaz tinha os traços característicos de grande parte dos paquistaneses, o tom de pele, os cabelos lustrosos e as onipresentes olheiras. Um bigode enorme ornava os lábios.
No banco, não consegui movimentar minha conta e me afligi. Teria que ir até o aeroporto buscar informações nos balcões de câmbio. Seu Nawaz nos levou até lá, mas ao invés de entrar com o carro no estacionamento, parou no acostamento de uma grande avenida que passava em frente a um dos acessos do terminal de embarque. Não entendi seus motivos, mas mais tarde descobri que a administração do aeroporto resolvera cobrar o estacionamento com base no número de pessoas no carro. Isso porque, o terminal pequeno era rotineiramente invadido por dezenas de famílias inteiras que iam buscar ou levar entes queridos em viagem, dificultando a segurança e a circulação.
Do outro lado da avenida, eu me perguntava de que maneira o motorista imaginava que eu poderia atravessar a via larga e movimentada, onde automóveis rodavam em alta velocidade. Diante da minha paralisia, ele saiu do carro e me respondeu. Chacoalhando os braços e avançando ele foi abrindo caminho entre os carros, enquanto me gritava ordens para avançar, tal qual Moisés abrindo o Mar Vermelho para os hebreus. Chegamos sãos e salvos ao outro lado da pista e da mesma maneira retornamos ao carro.
Já no mercado, Seu Nawaz nos aguardaria enquanto percorríamos as lojas. Após duas ou três horas, voltamos aonde ele estava parado e nos deparamos com uma cena curiosa. Entretido, o motorista desmontava a direção do carro, apertando parafusos e torcendo e retorcendo fios. O automóvel amarelo era pequeno e antigo, a parte traseira não comportava mais do que duas pessoas, a lataria estava corroída pela ferrugem e parecia nunca ultrapassar os 40km\h – o que não era de todo ruim, levando-se em conta o estado recém-descoberto do volante.
Em meu último fim de semana no país, fomos para Murree, uma cidade turística no topo de montanhas cobertas de neve. O caminho é tortuoso em razão da subida e das inúmeras curvas. A mudança de paisagem é gradual e acompanha a mudança de temperatura. À medida que avançamos, o frio é mais intenso, a vegetação é mais seca e de coloração arroxeada e a neve cobre o chão. O ar é mais úmido e rarefeito. Nas bordas da estrada, desafiando penhascos, velhas construções abrigam hotéis lotados de turistas em qualquer época do ano. As majestosas montanhas de Murree são destino de gente de todas as partes do país, em particular, de recém-casados em lua de mel, como Gramado e Campos do Jordão no Brasil. Um pouco mais pretensiosos, os locais a apelidaram de Suiça paquistanesa.

Murree

Em lugares como esse e em outras partes do Paquistão, que incluem Lahore e a própria Islamabad, os contrastes sociais são ainda mais evidentes. Pessoas e construções que denotam poder aquisitivo e modo de vida privilegiado são como rasgos de riqueza em meio à miséria.
O povo sofre com a falta de atendimento às suas necessidades mais básicas. Não há dinheiro, alimentos, instrução, moradia, saúde, saneamento, eletricidade e respeito e, algumas vezes, há raiva, intolerância, fanatismo, desunião e má-vontade. Mas, quase sempre, há sobras de afeto.
Em solo paquistanês, nunca fui discriminada, ofendida ou maltratada. Apenas, encontrei amigos, histórias e vivi experiências que valem para toda a vida.
Retornei ao Brasil dois dias depois da ida a Murree, já com saudades imensas de tudo o que fiz, vi e vivi por lá. Na despedida, após um último serviço prestado, o amigo motorista, curioso sobre a minha origem, me perguntava:
-Mas, você é de onde mesmo?
Eu esclarecia:
-Do Brasil, Seu Nawaz.
-Mas, e onde fica esse Brasil? É Reino Unido?
Anos de colonização britânica justificam a dúvida. Paquistaneses mais humildes e de pouca instrução têm pouco ou nenhum conhecimento de geografia, e sua única referência estrangeira é o reino em questão.
Eu tentava explicar, mas mencionar a América, do Norte ou Latina, Estados Unidos ou Canadá em nada ajudou a elucidar a questão.
Diante dos meus esforços, ele apenas disse:
-Não se preocupe não, dona. Só anota aí pra mim o endereço, que se um dia eu puder, vou lhe visitar.

  
***


Making of comentado

Paquistão em dois tempos

Gêneros e formatos:

            O texto elaborado trata-se de Narrativa de Viagem feita ao continente asiático, enfocando experiências vividas por mim, a autora, no Paquistão.
            Narrativas de viagem não são textos turísticos ou roteiros de viagem, mas textos autobiográficos que falam de sensações e sentimentos provocados por experiências simbólicas.
            O impulso de viajar e conhecer novas culturas, em busca da humanidade que é comum a todas elas, é algo que acredito que nasceu comigo e se desenvolveu em minha infância e adolescência, por influência paterna e pela expansão natural da minha própria curiosidade.
            Narrativas de viagem envolvem muitos aspectos: emocionais, culturais, políticos, econômicos, sociais e históricos. O recorte da pauta é um processo difícil e doloroso porque, invariavelmente, o sacrifício mesmo de pequenos detalhes implica na simplificação de algumas experiências que só podem ser compreendidas em sua dimensão se levados em conta os mínimos fatores que a impactam.
            Viagens para mim são, sobretudo, fontes de conhecimento e entretenimento. E a diversão e o prazer consistem em desvelar o mundo desconhecido, compreender seus mecanismos de interação, aprender a lidar com as idiossincrasias dos sujeitos e ser finalmente aceita em novos grupos.
            Viagem é coisa pra quem gosta de gente, porque não há nada que desafie mais a capacidade do indivíduo em estabelecer relações humanas que possam garantir sua sobrevivência em situações as mais diversas. E, em qualquer canto do mundo, só se sobrevive em grupo.
            Foi a partir deste ponto de vista que eu parti ao elaborar o texto, inteiramento expresso em voz autoral. Apesar de ser um texto fortemente narrativo, em função de sua natureza, busquei trazer elementos bastantes de descrição, com parágrafos sobre cenas e pessoas, citações e diálogos, bem como elementos de digressão, quase sempre resgatando meu fluxo de consciência no momentos das experiências narradas e descritas.
            A humanização do texto é inquestionável, uma vez que sou minha própria personagem e ali exponho em minúcias meus atos, sentimentos e pensamentos. Em relação aos demais, parti de duas análises: Uma mais racional e concreta, narrando ações e descrevendo pessoas fisicamente; outra mais emocional e abstrata: descrevendo emoções, interpretando comportamentos e expondo impressões sobre os indivíduos com os quais interagi.
            Obviamente não esgotei no texto todas as possibilidades. A narração pode se dar sob diversos ângulos e diferentes ritmos e linguagens. Considerando prazos e espaço, optei por dar ao texto um ar divertido e bem humorado, enfocando alguns choques culturais e o relacionamento com as pessoas. Os primeiros encontros, a curiosidade entre as partes seguida das reações de incredulidade, o sentimento de pertencimento a um grupo do qual antes nunca se fez parte. Deixei questões políticas e históricas em segundo plano, que seriam relevantes e permitiriam um melhor enquadramento da cultura do país no caso de ampliação deste primeiro texto ou mesmo sua transformação em livro.
            Objetivei exercitar nos processos de apuração e execução do texto os sete pilares do jornalismo literário, conforme passo a descrever no próximo item que aborda o processo de definição e realização da pauta.

Pauta:

            A pauta nasceu de uma paixão. Amo viajar a lugares diferentes e a sensação de choque cultural sempre me causou mais prazer que receio. No entanto, ao longo dos anos desenvolvi um carinho especial por um pedaço em particular do planeta, situado no subcontinente indiano: o Paquistão.
            Não sei como nem por que se iniciou tal processo de identificação, mas uma série de eventos sincrônicos ao longo dos anos só reforçaram meus vínculos e afeição ao país.
            Como em outras situações, o tema se impôs e não foi previamente planejado. Tanto que a ideia inicial, debatida durante as sessões de orientação era a realização de um texto baseado em minha última viagem ao lugar. Mas, ao dar vazão à criatividade na elaboração do mapa-mental, vi que pontos essenciais da minha primeira estada no país precisavam ser revisitados. Dessa forma, ao pôr no papel as ideias, optei por incluir os primórdios de minha relação com o oriente e minhas primeiras incursões em terras asiáticas.
            A presença dos sete pilares do Jornalismo Literário é inequívoca. A imersão, configurada na viagem em si e no contato com os nativos do país. A humanização, representada pela voz autoral no texto e presença de personagens. A responsabilidade assumida em relação ao que é apresentado ao leitor, bem como a exatidão das informações contidas na narração. A criatividade é demonstrada através das figuras de linguagem e na definição do próprio estilo, pessoal e bem-humorado. O simbolismo se verifica na ação, comportamento, forma de se vestir e expressar dos próprios personagens,  e em minhas decisões baseadas em impulso, intuição, complexos e atrações inconscientes.

Produção:

A produção se deu ao longo de quatro anos. Tem início com a minha primeira ida ao Paquistão, em 2008 e abrange meu retorno ao país, em 2012.
Entre 2008 e 2012, li livros sobre o lugar, acompanhei jornais e sites de notícias e ampliei minha rede de relacionamentos no país. Mantive contato com a Embaixada brasileira em Islamabad, bem como com a Embaixada paquistanesa em Brasília. Realizei trabalho de pesquisa e texto sobre mulheres que amam paquistaneses, e em diversos encontros com elas, absorvi conhecimento útil a uma melhor compreensão da estrutura social paquistanesa.
De posse de todo esse arcabouço teórico e prático, criei alguns mapas mentais no intuito de facilitar o processo de elaboração do texto. Utilizei algumas das técnicas de escrita-criativa ensinadas no curso da ABJL, em conjunto com as técnicas de visualização ensinadas em aulas ministrada pelo Professor Edvaldo Pereira Lima.
             O momento mais difícil do trabalho, foi a primeira leitura após a conclusão. Alguns ajustes foram necessários, mas tive que resistir ao impulso de ampliar ainda mais o texto, sob pena de não conclui-lo a tempo para a certificação. A cada leitura, imaginava várias outras maneiras de contar a mesma história e a decisão tomada de manter muitas de minhas escolhas iniciais veio depois de eu concluir que, de alguma maneira, tinha alcançado o objetivo da história, que era trazer ao leitor um lado mais suave e humano de um país e sociedade que é muitas vezes vistas apenas como rígida e perigosa.

Inspirações:

            As inspirações são várias. Indubitavelmente devo muito aos mestres da ABJL, sobretudo Professor Edvaldo Pereira Lima que, com sua paixão e didática, me orientou nesse processo de desenvolvimento dos meus textos. Os conhecimentos trasmitidos através de suas aulas e livros foram essenciais para o aprimoramento de minhas qualidades narrativas. Mais do que isso, a honestidade e o zelo, bem como o equilíbrio de seus posicionamentos nos momentos de avaliação em muito contribuíram para a minha motivação e auto-confiança como autora e me ajudaram a definir o caminho que pretendo trilhar daqui para a frente.
            No que diz respeito a estilo, critico e admiro Oriana Fallaci. Embora discorde veementemente de sua postura demasiado agressiva em relação ao que não concordava e, particularmente, de seus ataques radicais a muçulmanos e ao Islã após os eventos do 11 de Setembro, aprecio seus textos inteligentes e sarcásticos, e sua honestidade de pensamento. 
            É fonte, também, de grande inspiração, o escritor Tiziano Terzani. Mais do que como autor, sua integridade e seu pacifismo são valores que prezo e pretendo perseguir. Curiosamente, conheci mais de Tiziano após a leitura de cartas que ele teria escrito em resposta a artigos escritos por Oriana, e que foram publicadas no Jornal Corriere della Sera, onde as duas personalidades que admiro, discutiam a guerra e a paz no Oriente Médio.
            Por fim, dois outros autores também tiveram suas influências neste trabalho: Karin Mittmann, escritora e professora alemã citada no início do texto, que escreveu um livro fantástico sobre o Paquistão, após uma vida inteira no país em função de um casamento; e Fernando Scheller, jornalista do jornal O Estado de São Paulo que, recentemente, publicou uma narrativa de viagem deliciosa sobre os dois meses que passou no país.

Referências Bibliográficas: 

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: O Livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1995.

MITTMANN, Karin. Culture Shock! A Guide to Customs and Etiquette. Singapura: Kuperard, 2004.

SCHELLER, Fernando. Paquistão, Viagem à Terra dos Puros. São Paulo: Editora Globo, 2010.

Dawn. Disponível em . Acesso em: 30 abril 2012.