quarta-feira, 4 de maio de 2011

Maria das Dores do Mundo e Ela





O toque da campainha. Dim dom. Ela nada escutou. Dim dom. Suavemente, um toque elegante. Dimmm Dom, já um pouco mais exaltado. Toc toc toc. Tó tó tó tó toc. “Já vai, já vai”. Ela desperta, irritada e sonolenta se encaminha em direção à porta, suspendendo as calças do pijama, que lhe dão um ar circense. Calças largas, pelo menos duas vezes o seu tamanho, coloridas como se prestassem homenagem ao orgulho gay e extremamente confortáveis – ao deitar-se com elas, colchas, travesseiros e calças pareciam ter sido cosidos em um só confortável, macio e quentinho tecido –, os peitos soltos, sem nada que lhes restringisse o movimento, e os cabelos presos – já que havia desistido de tê-los curto, depois de muita disciplina – era assim que dormia. Tateou a cama, antes de abandonar o quarto procurando um moletom velho que lhe desse alguma dignidade.
Abriu a porta. Às sete da manhã, uma senhora por volta de seus quarenta cinco anos, muito bem vestida – o que lhe causou um leve desconforto -, bem maquiada e cheirando à Paris se apresentou: me chamo Maria. Segurava uma pequena valisa em uma das mãos, enquanto unhas de navalha serravam a palma de sua outra mão. Ela, ainda entorpecida pelas poucas horas de sono interrompidas, continuava parada à porta tentando entender o que se passava. Quem era aquela figura que a incomodava não só pela sua aparência, mas pelo horário em que se atrevera a tocar sua campainha.
Ela repetiu: sou Maria. Maria das Dores do Mundo.
Aquilo estava ficando cada vez mais esquisito, e ela não sabia se fechava a porta antes que a fulana pudesse falar a próxima palavra, e num átimo girava as chaves e voltava correndo para debaixo de seus cobertores como se aquilo fosse um sonho.
Mas, Maria foi mais rápida. Quase como se a atravessasse, Maria passou por ela e já sentava ao sofá. Arrancava os saltos e perguntava: você tem café?
A ela então ocorreu que não, ela não tinha café. Detestava café e qualquer pessoa que gostasse e lhe visitasse, quando tomava conhecimento do fato, caso pretendesse demorar mais em seu apartamento, corria ao mercado da frente para comprar seu próprio pacote do precioso energético. Por muitas vezes pensou no quanto gostaria de gostar de café, e tal qual aquela amiga que se dispôs a gostar de comida japonesa e hoje era, sincera ou não, frequentadora assídua de sushi bares, perguntava-se se algum dia poderia aprender a gostar de bebê-lo. Mas, não, ainda não gostava e nem tinha café em casa. A mulher suspirou contrariada e deu de ombros.
Maria suspendeu a valisa e lhe disse: "É sua, tome."
Ela replicou fracamente entre o cansaço do pouco tempo de sono e angústia pela qual ia se sentindo tomada: “Não quero!
- “Mas, então, me desculpe, quem é você?"
- “Maria”, ela respondeu como quem pergunta: és surda? - “Maria das Dores. Das Dores do Mundo.”
- “Sim, eu ouvi o seu nome. Não quero ser indelicada, mas, quem é você? O que você deseja?”
Maria apertou os lábios, elevando as maçãs do rosto, como quem não estava entendendo o que estava se passando. Franziu a testa. Seus cabelos longos, lisos, loiros caindo sobre os ombros. O corpo coberto por um elegante e estranho tailler amarelo, sapatos que pareciam saídos de um filme sobre a Revolução Francesa. Era tudo um exemplo tão real de nonsense que ela achou que se não havia enlouquecido era porque provavelmente ainda sonhava. Foi quando um leve arrepio lhe percorreu o corpo, ela sentiu o tronco esquentar e o coração acelerar como repique de bateria de uma escola de samba. Talvez a louca não fosse ela. Mas, se aquela madame não estivesse em suas condições normais de pressão e temperatura, se fosse alguma desequilibrada que simplesmente lhe batera à porta ao acaso e por falta do que melhor fazer, então, como livrar-se dela sem provocar algum dano, à si mesma, àquela mulher ou a qualquer pessoa? De repente, foi tomada de irritação: Por que ninguém lhe interfonara antes? Afinal, aquela estranha não poderia ter passado pela portaria sem autorização prévia. O pensamento emendou. Bem, ela poderia ser uma moradora do prédio. A raiva diminuiu, o receio voltou a ocupar seu lugar. Mas, que merda. Ela estava com sono e dentro de uma hora teria um compromisso, ao qual não poderia faltar e para o qual precisava estar minimamente disposta. Voltou sua atenção para a mulher que, há minutos já, encontrava-se na mesma posição: com o braço soerguido empunhando a valisa em sua direção. Ela, então, segurou a pequena mala e colocou-a na mesa. As mãos na cintura, encarou Maria, estava disposta a resolver aquele impasse, repetiu: - “Quem é você?”, já num tom mais impaciente. Maria voltou a encará-la e então falou: Mas, meu Deus, que pessoa confusa! Tudo bem, não vou importuná-la, só queria entregar a valisa.” “Posso beber um copo de água?”, já cozinha adentro, Maria abriu o congelador, retirou o gelo, tão naturalmente como se estivesse em sua própria casa, meteu-o no copo e este se pôs a encher na torneira. Bebeu cinco copos seguidos. 
A essa altura, ela teve uma vontade súbita e incontrolável de ir ao banheiro, como se aquele litro d´água tivesse sido ingerido por si própria e não por Maria. Mas, ainda teve tempo de pensar se seria uma boa ideia largar aquela mulher sozinha no meio da sala do seu apartamento. E se a louca (já a assumira desequilibrada, diante dos fatos) fosse uma piromaníaca e pusesse fogo no lugar enquanto ela estava ao toalete. A necessidade fez o ladrão. Sem tempo de achar a solução, achou o caminho para o banheiro. Três minutos depois saía apressada e encontrava Maria das Dores do Mundo deitada em sua cama, abraçada ao seu travesseiro, dormindo o mais pesado dos sonos. Pensou em acordá-la, pensou em chamar a polícia, pensou em interfonar para o porteiro, ligar para algum amigo, mas acabou voltando à sala e parou diante da valisa. O que haveria lá?
Era uma valisa comum, dessas que as mulheres usam para transportar cosméticos e maquiagem. Não era velha, nem nova. Não tinha logotipos de qualquer tipo. Preta. Resolveu segurá-la. Não era leve, nem era pesada. Cheirou. O mesmo cheiro de Paris de Maria. Chacoalhou a maleta. Ouviu um ding ding dong e sentiu algo rolar. Veio à sua mente as bolinhas azuis de meditação que comprara há dez anos em uma viagem à Austrália. Devolveu a maleta à mesa. Passou a mão direita pelo rosto, apertou o queixo com força, uma ação que repetia sempre que se encontrava tensa diante de um problema, como se aquilo pudesse lhe trazer uma boa ideia ou um ímpeto de coragem. Sentou no sofá. Rapidamente lhe ocorreu que pudesse ser uma bomba. A razão lhe negou tal possibilidade, afinal: quem teria interesse em matá-la? Não, essa hipótese não fazia o menor sentido. Mas, então, afligiu-se: o que fazia sentido naquilo que estava acontecendo? Não conseguiu decidir-se por algo. Os minutos se passavam. Ela só percebia o tempo graças ao silêncio por todo o apartamento que lhe permitia ouvir o tiiic tiiic tiiic do relógio de pulso que usava. Estranhou, se deu conta de que, de repente não escutava o barulho dos carros na rua, nem dos aviões cuja rota passava exatamente por cima de seu prédio.
De repente, percebeu o velho e conhecido sentimento que se apoderava dela quando sabia que precisava fazer algo logo, mas não sabia o que. Ansiosa, agarrou a mala com as mãos ding ding dong ding dong e colocou-a no colo. Com o zíper entre os dedos, foi abrindo devagar zzzzzzzuuuum. Agora, era só levantar a tampa. Respirou soltando o ar pela boca. Abriu: "Mas, que coisa, que coisa." Não sabia o que pensar, o que achar. Que coisa estranha e irritante. Tornou a fechar a valisa zzzzzzzuuuum. 
Voltou para o quarto, deitou-se ao lado de Maria, a abraçou e dormiu.