Lixo: apenas partes do corpo vestigiais e orgãos inúteis (ex. apêndice, amígdalas e vesícula) |
É o dia mais quente do inverno.
Minha barriga dói. Deitada sobre ela, entediada, sou de tempos em tempos
assediada por ondas de calor e culpa. O ventilador não traz alívio. Ele se
aproxima, cruzando o pequeno corredor. A camiseta laranja velha e a cueca branca
denunciam os anos de relacionamento: catorze. Ele me beija as costas, acha
graça do modelo da calcinha e examina meus tornozelos. Sai do quarto e retorna
em 10 segundos carregando uma lâmina cega de barbear. Eu emito grunhidos de
irritação e alguma dor ao me mover enquanto tento mantê-lo perceptível aos
olhos. Ele agarra minhas pernas e passa a raspar alguns pelos ralos. Eu me
contorço pra evitar uma gargalhada e a barriga dói mais. Eu amo esse homem.
São 04 pequenos pontos roxos
estampando uma piscina de pele cor de rosa.
Quando eu era pequena, e tive
catapora, costumava me esconder no banheiro onde meu pai guardava nossa pequena
farmácia para mexer nas agulhas descartáveis, as esterilizava com perfume e ia
espetando, uma a uma, as bolhinhas sobre a pele. Sempre gostei de experimentos
do tipo: estourar bolhas, espremer machucados, arrancar casquinhas, apesar de
ter renegado a medicina como ganha-pão.
Cada ponto roxo é coberto por uma
capinha plástica, grudada à pele, tão grudadinha que a custos contenho o ímpeto
de ir deslizando a unha por baixo, descolando o tecido transparente que
começa a sair do lugar.
Sinto-me um pouco grávida ao
contrário. O parto fora feito, mas a barriga inchada e os incômodos vieram
depois. Eu pari umas pedrinhas e alguns pedaços de vesícula, abandonados em
um potinho transparente que repousa sobra a mesa de jantar. Ainda no hospital,
eu achei aquele souvenir
pós-cirúrgico um tanto mórbido, quis abandoná-lo na lata do lixo, tal qual certas mães desalmadas o fazem após parirem as crias, mas não consegui. O
fruto do meu ventre foi recolhido pelo marido, preocupado com gentilezas: “eles
tiveram o trabalho de separar em um vidrinho e etiquetar, eu não poderia deixar
lá”.
Agora, meu mundo cai e a barriga
dói.
São contas de bancos a entrarem
de greve, uma cozinha que não se monta sozinha, decisões pesando sobre o
pescoço como guilhotinas e um medo grande, bem muito grande do futuro próximo.
A sexta-feira chegava com o
emprego novo, e o meu corpo confundido pelas minhas expectativas, resolveu ele
mesmo me dar trabalho.
Corremos todos ao hospital, eu e
a família onipresente. Horas de espera e nenhuma dor – graças às ironias da
vida, 04 buscopans e um metabolismo garfieldiano. Optou-se pela mutilação.
Já na sala de cirurgia, dopada,
eu sabia o que estaria por vir, mas não antecipei os desdobramentos. São 04 singelos
furos. Por um deles me enchem de ar, que nem balão de aniversário; pelos outros
três cortam e recortam o saquinho quase inútil que deu pra me sacanear. Eles te
enchem de gás carbônico, e depois ficam com preguiça de chupar o resto de
volta, aí você fica assim, parecendo bexiga de fim de festa.
Um comentário:
Rebequita, fico boba de como voce escreve bem!!!!!
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