sexta-feira, 8 de março de 2013

Ana*, a terceira geração de uma família de mulheres vitimadas por seus parceiros


A genética e a psicologia já explicaram muito sobre o indivíduo e suas relações, ações, reações, paixões, afetos, fobias e impulsos. Mas, ainda nos surpreendemos quando nos damos conta que gerações de um mesmo grupo familiar parecem repetir a mesma vida e que suas tentativas de mudar o destino são trabalho de Sísifo.
São 4h30 da tarde. Em uma pequena escola de idiomas, alguns alunos estão sentados próximos à mesa da recepção, dissimulando indiferença frente à jovem cujo tom vermelho dos olhos compete com o da parede aos fundos da sala. Entre lágrimas mal contidas, soluços e suspiros, Ana*, a recepcionista, escuta a gerente rispidamente pedir que ela saia da mesa de atendimentos para se recompor. Da sala de aula, sou interrompida de tempos em tempos pelas dúvidas de uma aluna, pelo barulho de aviões e pelo choro da moça que, agora do lado externo da casa que abriga a escola, anda de um lado a outro aos prantos. Apenas uma parede com janelas nos separa.
Alguns dias depois, a pedidos, ela me conta sua história. Não é a primeira ameaça. Segundo ela, Ronaldo* já havia feito muitas outras: “Vou te matar, vou acabar com a sua vida”. “Se você não ficar comigo, não ficará com mais ninguém”. “Não vou deixar nenhum homem criar a minha filha”.
Ana* se apaixonou aos 15 anos, se casou aos 17 e veio de uma estância hidromineral paulista para a capital do estado, em busca da realização do sonho do marido. Ronaldo* fez vários cursos e queria ser cabeleireiro. Montou um salão relativamente bem sucedido em um bairro na zona sul da cidade. É desse momento em diante que a vida da moça se transforma em pesadelo.
As dolorosas experiências pelas quais tem passado nos últimos anos não se refletiram em sua aparência, no entanto. Não é alta, nem baixa. Não é gorda, nem magra. Sua tez muito branca, os olhos esverdeados, os cabelos claros na altura dos ombros e o sorriso metálico – ela usa aparelhos dentários – lhe dão um ar suave e adolescente. Poderia facilmente ser confundida com uma colegial. Sua delicadeza não permite adivinhar seus 24 anos. Ela é mais jovem que sua própria juventude.
O marido, quatro anos mais velho, é, segundo a recepcionista, teimoso e agressivo, uma pessoa que não ouve o que os outros falam e que não se importa com ninguém. Ela sustenta que, no entanto, nem sempre foi assim e afirma que o relacionamento no início era maravilhoso: “Me tratava como uma rainha”. Após dois anos em São Paulo, decidiram ter um filho. Daniella* nasceu e Ana* parou de trabalhar, dedicando-se a ela em seus primeiros seis meses de vida. Foi mais ou menos por essa época que Ronaldo* começou a beber descontroladamente e a fumar maconha.
Ana* culpa as novas amizades, adquiridas em um contexto de crescimento profissional de Ronaldo*. Culpa, também, seu ego inflado: “Ele começou a ganhar muito dinheiro, quis aparecer”. O jovem marido se tornou, assim, uma paródia daquelas celebridades hollywoodianas, que jornais especializados em fofoca costumam alardear as idas forçadas às clínicas de reabilitação. Incapaz de administrar com equilíbrio o próprio “sucesso”, sucumbiu aos seus efeitos colaterais mais deletérios. Alterado quando bebia, destratava a mulher em público e, dentro de casa, exigia que ela se levantasse durante as madrugadas para lhe preparar comida. A cada negação da esposa, agressões verbais, até que um dia cabeceou-lhe o nariz.
Ela não foi à delegacia. Alega que não adianta denunciá-lo porque a polícia não pode protegê-la: “Porque a única coisa que eles vão fazer é mandar ele manter distância de mim, de alguns metros. Isso acontece com mulher no mundo inteiro, a polícia não faz nada,  só faz depois que acontece. Ele vai fazer o que ele quiser fazer.”
Apesar do medo de morrer, Ana* busca conforto na dúvida que tem de que o marido seria realmente capaz de matá-la: “Eu fico assustada, né? Eu penso na minha filha. Tenho medo dele fazer alguma coisa, mas não sei, não tenho certeza que ele vai fazer tudo o que ele fala. Eu sou mãe da filha dele, não acho que ele tenha coragem, a não ser que ele tenha um motivo muito sério pra fazer isso, mas ele não tem”.
O pedido de separação
Em março deste ano (2011), Ana* pediu a separação. Ronaldo* não saiu de casa. Se recusou a sair de lá. Ela decidiu ir embora com a filha, foi para a casa da mãe. As ameaças que antes ocorriam quando o marido estava bêbado, após a separação forçada passaram a ocorrer mesmo quando ele estava sóbrio. Às 10h da manhã seguinte àquela em que Ana* chorava no trabalho, Ronaldo* passou pelo portão da casa da recepcionista antes que a mulher tivesse tempo de perceber e fechá-lo. Em segundos, ele estava na sala de estar, onde àquela hora a moça assistia sozinha à televisão.
O (ex) marido chegou nervoso. Em meio à ladainha habitual: “se você não for minha, não será de mais ninguém”, chorando, puxou a moça pelo cabelos forçando-a a se ajoelhar, sacou uma arma e deu dois disparos, mal sucedidos, em sua direção. Ana* narra os fatos rindo, descarregando sarcasmo e aliviando a tensão. Entre o choque do insucesso e a incredulidade frente ao que acabara de fazer, Ronaldo* desespera-se e começa a berrar. Uma vizinha acode e, ao chegar no local, ameaça chamar a polícia. Ronaldo* vai embora, Ana* é tomada de pavor. Naquele dia é escoltada pelo namorado da mãe até o trabalho. No caminho, nota que ele a observava da “esquina da rua de baixo”.
Ana* tem medo do marido agressor. Mas,o que pode fazer uma jovem acuada que não confia naqueles que têm por ofício a obrigação de protegê-la? Se leis e tutelas judiciais não são obstáculos poderosos o suficiente para convencer alguém obcecado pela ideia de matar a não fazê-lo, de que servem à moça? “Preferi ficar em casa, me isolar. Não atendo mais telefone, mudei o número de casa”. Ele ainda a procura todos os dias. Todos os dias está no portão da sua casa. Vê a hora que ela chega. Vive atrás dela. “Minha vida é só trabalhar e ir pra casa. Não faço nada pra não dar motivo pra ele achar que eu tô fazendo alguma coisa e vir atrás de mim”. Ela afirma ter medo, mas conclui: “Se tiver que acontecer vai acontecer. Eu não vou parar minha vida por causa dele, entendeu?”, sem se dar conta da própria contradição.
O aborto
Há dois anos Ana* já não estava mais feliz na relação. “Quando a gente completou quatro anos juntos eu desanimei, comecei a desanimar. Nos últimos anos só fui empurrando com a barriga, por causa da minha filha, porque ela é louca por ele”. Este ano (2011) eles completariam bodas de açúcar, mas a vida em comum há muito já não tinha nada de doce.
Na recepção da escola em que trabalha, relembrando os fatos, Ana* se emociona, os olhos se encharcam de lágrimas e ela faz uma confissão: “Ele me fez fazer coisas que eu nunca imaginei que fosse fazer depois que a gente se separou. Eu engravidei dele. Eu tirei”. O assunto se estabelece subitamente, vem à tona como um segredo que não aguenta mais ser guardado. Precipitada, concluí com espanto que ela havia sido estuprada. Ela rejeitou a ideia com certo horror, corrigindo-me com pressa. Não havia sofrido violência, apenas se entregara a ele em um estado de ânimo oscilante entre o costume e a resignação: “Porque como eu disse, há 2 anos a gente vinha empurrando com a barriga. Eu não queria como antes, mas aconteceu”.
Ela não queria a criança, mas ele estava feliz com a novidade. Ana* tentou convencê-lo do aborto e, quando ela própria já não tinha mais tanta convicção de sua decisão, ele concordou com ela. Como dizia Vinicius de Moraes: “A vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Ronaldo* lhe deu o remédio que daria fim à gravidez. Aquilo doeu em Ana* com mais força do que todas as agressões a que ele a tinha submetido. Bastante abalada, ela diz que se arrepende: “Nunca imaginei que faria isso. Eu sofri demais, doeu, até hoje eu sinto dor”. 
O histórico familiar
Questionada sobre a posição dos seus pais frente aos fatos, Ana* esclarece que a mãe a apoia e revela que não tem pai, nunca o conheceu. “Acho que, se eu tivesse, seria tudo diferente… Ah, sei lá. Acho que quando você tem a presença masculina em casa, quem tá convivendo com você, te respeita muito mais”, reflete melancólica. O pai bebia demais, assim como Ronaldo*, e agredia sua mãe, assim como Ronaldo* a agredia. Um dia o pai partiu e a mãe não o procurou. Criou Ana* sozinha, que do pai herdou a aparência, mas não o sobrenome. “A situação deles foi igual a minha com o Ronaldo*”, define amargurada.
Até seus 15 anos de idade, Ana* acreditava que o padrasto era seu pai, quando um vizinho indiscreto comentou que havia evitado seu sequestro pelo verdadeiro genitor quando a menina contava 3 anos de idade. Encontrar o pai então tornou-se uma obsessão. Morre de curiosidade de saber como ele é. “Todo mundo que me conhece e conhece ele, as pessoas e familiares, diz que eu sou a cara dele. Minha mãe é morena, parece índia. E ele não. Todo mundo diz que ele é loiro, alto, tem o olho claro, é alegre. Não quero ter contato, que eu sei que ele fez mal pra minha mãe, quem garante que ele não vai fazer agora também!? Não queria contato nem nada, só tenho curiosidade de olhar pra cara dele. Só isso”.
A família de Ronaldo* está ciente da situação enfrentada pelo casal, mas segundo Ana*, de “mãos atadas”. O filho é resistente aos conselhos dos pais. Com o genitor mantém apenas um acordo: o gosto pela bebida. “O Ronaldo*, ele faz tudo o que o pai dele faz. O pai dele bebe muito. Todos os irmãos bebem que nem o pai. Deve ser hereditário isso”.
Para a filha Daniella*, Ana* deseja a felicidade que as mulheres de sua família têm buscado sem sucesso. “Todas as atitudes que eu quero tomar, é só por ela. Eu tô correndo atrás, quero um lugar pra eu morar, estou atrás de trabalho. Eu quero tudo pra mim ficar longe dele, trabalhar em outro lugar, pra mim não ter a mesma história que a minha mãe ou pior. Porque na minha família as histórias não são tão boas assim”, diz entre amarga e constrangida.
A irmã de sua mãe foi assassinada por um ex- namorado que não aceitava o fim da relação. Ela tinha uma filha que, revoltada , “virou garota de programa” e seguiu uma vida “louca”. O homem está solto até hoje. Na famíla de Ana* as histórias são muito parecidas. “A minha avó, o meu avô largou ela muito cedo e ela criou os filhos sozinha. “Ela enterrou dois filhos, o meu tio - um assaltante morto na cadeia - e a minha tia, aí ela não aguentou e faleceu”.
Se “fugir” com a filha, Ana* pretende dizer tudo sobre sua origem porque não quer que a menina passe pelo que ela própria está passando hoje, adulta, tentando encontrar o pai. Acredita que é um direito de ambos o reconhecimento da relação que os une, independente do que aconteceu. De qualquer forma, ela diz que terá que se esconder, por conta das perseguições que ele empreende. Ele não a deixa em paz. Se pudesse teria feito diferente. “Da minha filha eu não me arrependo, ela foi a maior benção que aconteceu na minha vida”, diz em meio às lágrimas, “mas casar, acho que não teria me casado”. Nem nunca irá casar de novo, segundo ela.  “Eu quero sumir. Tenho vontade de fazer uma besteira só pra não ter que olhar pra cara dele. Mas, aí eu penso na Daniella* porque ela não tem culpa de nada, entendeu? Ela é tudo na minha vida e gosta do pai, mas é super compreensiva e inteligente para os 4 anos de idade. Tanto que quando eu saí de casa, ela falava: ‘Vamos, mamãe, embora. O papai tá bebendo’. Isso que me deixava mais chateada, porque ela vendo tudo isso… ela não podia ver, ela tem 4 anos. Se não fosse ela, acho que não teria conseguido”.
Os planos para o futuro
Ana* reflete sobre sua situação com o (ex) marido: “Ah, eu gostaria que ele fosse uma pessoa diferente. Ele pede desculpas, vem atrás, diz que nunca mais vai fazer. Mas, isso ele já fez várias vezes”. Ela ainda gosta dele, mas guarda muito mágoa. “Pra voltar, acho que eu não voltaria”, diz incerta, para acrescentar já mais convicta e um tanto irritada: “Minha vontade é sumir daqui, não ver ele nunca mais”.
Ela está vendo lugares para morar, para não ter que ficar perto dele. “Eu tenho medo dele me fazer alguma coisa. Pior, ir atrás da minha filha, buscá-la na escola”. A mãe dela não quer que ela vá. “Se eu for ela vai comigo. Sem mim ela não fica, ela é muito preocupada. Mas, eu evito contar os detalhes pra ela não ficar tão nervosa.  Tenho medo da reação dela. Dela ir atrás dele e ele fazer alguma coisa com ela”. Planeja voltar a estudar, fazer uma faculdade. Ana* terminou o segundo grau, mas logo começou a trabalhar e depois teve a filha, não houve oportunidade. “Ano passado eu tinha ganho uma bolsa de estudos na Unip, de 100%, só que ele não deixou”. Ele não a deixava fazer nada, nem sequer ir à padaria. A ideia dela, agora, é estudar marketing: “É uma área que eu gosto”, diz sorridente, sonhando um sonho que já não é mais o do marido.
Entrevista realizada em 2011, durante oficina de perfis na ECA-USP e apresentada como TCC do curso de extensão em jornalismo e políticas públicas promovido pela ANDI em parceria com a ECA-USP. 
*Os nomes reais das personagens foram trocados para preservar suas identidades, a pedido da entrevistada.