sábado, 9 de julho de 2011

Minha primeira FLIP, lembranças da infância, uma amiga altruísta e Pola Oloixarac


Eu andava excitada com a ideia de ir à Paraty. Fazia anos que alimentava a curiosidade em relação à festa literária. Mas, como vontade dá e passa (quase sempre), o plano de ir ao evento ia ficando de lado. Mas, diferentemente do que ocorreu com a minha vontade de conhecer o carnaval em Salvador, que com o passar dos anos “mó-rreu”, a vontade de ir a Paraty ganhou força esse ano, sobretudo depois que desenvolvi uma nova obsessão em minha vida: realizar cursos e mais cursos de jornalismo e literatura; e, em anexo, uma compulsão por comprar livros razoavelmente controlada por dois fatos: ausência de espaço doméstico para armazenamento e total incapacidade de ler o presente estoque num período inferior a vinte e quatro meses.

Enfim, lá me fui.

Uns dias antes da viagem, fuçando blogs, me deparei com um texto do jornalista Antônio Prata, em que ele falava de suas lembranças de infância acerca de viagens que fazia ao interior de seu estado, na companhia do pai, para visitar parentes. Ele comentava em detalhes as estratégias do genitor para manter os filhos entretidos durante todo o percurso, mantendo as ansiedades em um nível razoável. Daí que me lembrei que eu também passei uma boa parte da infância indo e vindo do litoral alagoano, onde eu morava, ao sertão pernambucano, onde moravam meus avós paternos, por longos e intermináveis caminhos, os quais, com alguma sorte, podíamos considerar estradas. Entre buracos, muita areia, alguma lama e áreas inundadas por pequenos córregos, rezávamos para o chevette à álcool não atolar, nem afogar. Minhas lembranças mais antigas sobre estes fatos são realmente antigas. Isso porque, conforme me lembro, na época, costumávamos ir, eu e minha irmã, durante todo o caminho, deitadas no banco traseiro, em posição de conchinha. Considerando que, há muito, nossos corpinhos singelos, mesmo solitários, já não cabem naquele espaço, é indubitável que desse período de nossas vidas já se vai um bom tempo.

Mas, rememoro com prazer a grande excitação que sentia ao vislumbrar algumas cenas pelo caminho. Sou dotada de uma imensa e, às vezes, terrível facilidade para imaginar coisas, que via de regra extrapola em muito minha habilidade para me expressar. Daí que quase sempre padeço de uma grande agonia, daquelas que se sente quando a ideia não encontra a palavra. O que mais consumia minha atenção, além das vacas que costumava contar, era o sem número de velhas construções abandonadas no meio do nada. Alguns casarões cujas paredes pareciam lambidas por uma língua negra, semi-destruídos e tomados pelo mato, num átimo, se transformavam em “casas-grandes” de um passado colonial fantástico e menos perverso que o histórico. Num vai e vem contínuo entre ficção e realidade, eu criava fantasmas que perambulavam por esses esqueletos de concreto arrastando suas correntes e chorando amores perdidos. Delírios tão clichês quanto os de qualquer menina.

Na estrada para Paraty, tão diferente daquelas pelas quais costumava viajar quando criança, nenhuma casinha quebrada que gritasse por minha atenção. Só sono, revistas e um adolescente de cerca de 14 anos que viajava ao meu lado sem muita certeza de para onde estava indo. Passou rápido, um pulo do ônibus ao táxi que me levaria a pousada onde estou hospedada. Joguei as malas no chão, cerrei a porta, devolvi as chaves e um pulo da pousada ao centro-histórico da cidade. Lindo! Como passei tantos anos, 30, sem ter posto os pés nas ruas de pedra de Paraty!? Ia ao encontro de uma amiga, uma mocinha fofa, pós-moderna e pós-balzaquiana, que me aguardaria em uma casa onde veríamos juntas uma palestra, debate ou conversa, da qual faria parte um ex-professor comum. No entanto, contando com a astúcia, mas sem descontar a sua incrível capacidade de distração, depois de em vão me debater à procura do lugar, resolvo telefonar para saber de seu paradeiro exato. Ando, ando, ando. E para minha estupefação, ela, que ao telefone insistia estar no lugar combinado, se encontrava em meio a um grupo masculino, numa sala minúscula de uma das dezenas de casinhas centenárias, espalhada em uma cadeira, braços cruzados e um ar inocente e curioso, acompanhando uma discussão insustentável e um tanto insuportável acerca das capacidades dos indivíduos ali pousados, supostos poetas blogueiros ou blogueiros poetas, que se gabavam ora de seus dotes artísticos, ora dos inúmeros 2 ou 3 comentários elogiosos que recebiam em suas páginas virtuais de poesias realmente chatas.

Eu avanço constrangida e me jogo sobre a cadeira em frente à dela. Ladeada por dois desses poetas blogueiros ou blogueiros poetas, a síndrome das pernas irriquietas se manifesta e aumenta de intensidade na proporção do ritmo das palavras trocadas entre os dois seres que não sabem se me ignoram ou me incluem. Rezo pela primeira opção. Minha amiga pisca, devolvo um sorriso amarelo. Ela levanta: Vou ao banheiro! Minha mente é mais rápida que meu corpo, mas alguns minutos depois eu a busco no corredor. Ela diz: Sabe que eu acho que tô no lugar errado! Retruco sardônica: Eu não acho, tenho certeza! Admirada: Pois é, achei estranho que ninguém aqui conhece o professor! Eu, agoniada: Então vamos sair daqui!? Ela volta relaxada para a mesma posição e sorri. Penso comigo: Enlouqueceu! Devem ter dado o cigarrinho do capeta enrolado em folhinhas de livro de poesia pra ela fumar. Olho suplicante para a filha dela que nos acompanha e alheia segue a discussão(?) sentada no sofá: Tenho fome! Ela levanta e se oferece para ir comigo ao restaurante. Retorno o olhar ainda suplicante para minha amiga, ela sorri, levanta e abaixa a cabeça calmamente e susurra: vai, vai.

Algumas horas depois, minha querida amiga, essa cruza masoquista de Poliana e Madre Tereza de Calcutá, dando de ombros, comenta: Até que eles falaram algumas coisas legais. Tem um cara lá, deve ter uns 30 anos, já escreveu 20.000 poesias. Repete: 20.000 poesias!!! Aparentemente em uma espécie de transe ele é capaz de escrever por horas sem fim. Emenda rindo: Um outro rapaz falou que o que ele faz deve ser psicografia. PSICOGRAFIA. Ela gargalha. Tirou o mérito do coitado, explica. Cabreira, pergunto a ela porque ficara tanto tempo ali. Ela me diz que ficara tocada e se sentira mal em deixar o lugar. Pela mesma razão, minha amiga adquire tudo e qualquer coisa que lhe oferecem por lá, de literatura de cordel a canetas de um senhor que diz precisar de dinheiro para sua formatura em breve no curso de medicina.



De palestra em palestra, chego à mesa de Miguel Nicolelis e Luiz Felipe Pondé. Excelente! MN é um senhor nem alto, nem baixo, grávido de uns 7,8 meses, vestido nas cores de seu time do coração, o palmeiras, semi-careca, óculos, tranquilo e dotado de uma positividade e simpatia cativantes. Quando inicia sua apresentação, temos à frente um Lair Ribeiro da neurociência. O homem é fantástico e eu quase decido mudar, mais uma vez, de carreira e me inscrever em um dos cursos de seu Instituto em Natal. LFP é um homenzinho estranho. Careca, óculos, uma barbicha branca e vestido de negro. Tem um ar taciturno, que logo se esvaece quando abre a boca. Afetado e inteligente, faz colocações óbvias de maneira brilhante: “O que caracteriza o ser humano é o sofrimento” “O que humaniza o ser humano é o fracasso”. Como todo bom filósofo, sua retórica é incrível. Inicia-se uma luta. MN defende os milagres da ciência, fala da libertação do cérebro humano da prisão do corpo, cita Santos Dumont e divide sua grande expectativa: Na abertura da Copa do Mundo pretende ressuscitar Lázaro. Visualiza uma criança tetraplégica, chutando em direção ao gol, usando uma armadura de fazer inveja aos antigos soldados romanos, remotamente controlada pelo som de suas tempestades cerebrais. LFP bate, rebate. Direita, esquerda, direita esquerda, um cruzado no queixo: “O projeto de eugenia faz parte da utopia ocidental desde os tempos de Platão.” Ele diz que o objetivo é que pessoas ultrapassem os limites da dor, do sofrimento, da agonia. O embate continua, mas MN se deixa apanhar. Apenas acompanha com um leve sorriso o a sequência de batidas do companheiro de palco. MN tem na ciência sua religião. Se orgulha dos resultados obtidos através de experimentos: "Milagre deveria ser palavra adotada pela neurociência, porque nesse departamento fazemos umas coisinhas melhores". Segue o embate entre otimista e pessimista. Discutem-se paradoxos. Ciência e Religião, Ciência e Eugenia. Felicidade e Sofrimento. Melancolia e Alegria. Os debatadores se apegam às suas opiniões, mas LFP é visivelmente o mais maniqueísta. Sabe Deus o porquê, já que é um filósofo apto a lidar com paradoxos. Nenhuma das considerações feitas por ambos se contradiz no fim das contas. Não pode a evolução da ciência eventualmente ser vista como um milagre de Deus? (ou vice-versa) Já não se sabe que em tudo que se faz há riscos, e a eugenia é uma possibilidade nesse processo de busca humano pela perfeição e pelo fim da dor? E são os riscos e os medos motivos razoáveis para não se buscar o melhor, sob a justificativa de que do melhor pode se advir o pior? A explanação das teses e antíteses foram ótimas, mas saí com a sensação de que faltou a síntese. Ah, no fim, aparentemente, MN ganhou por nocaute dizendo que se Santos Dumont, o símbolo que acompanhou todo o seu discurso durante a mesa, tivesse entrado na escola (o pequeno não concluiu os estudos), teriam convencido nosso gênio de que a ideia de voar era um sonho maluco, e que então “ele teria talvez estudado filosofia, aprendendo a não fazer nada”.



Dia seguinte, sigo curiosíssima para a mesa com a escritora argentina Pola Oloixarac, a “musa da FLIP 2011”. A vinda da guria vem sendo celebrada há meses. Na lista da Granta (revista renomada especializada em Literatura), entre os melhores jovens escritores de língua espanhola, com críticas positivas e livro (Teorias Selvagens) publicado em diversas línguas, a jovem de 33 anos é muito bonita e carismática. Semanas atrás eu havia lido uma entrevista com ela e fiquei incomodada. Até aquele momento não sabia que tal figura existia. Entre outras coisas, ela falava de sua obra, numa linguagem incompreensível para mim, e levantava questões retóricas como: “Não se pode ser linda e inteligente?” Formada em filosofia e conectada ao meio acadêmico, seu livro supostamente ironiza esse ambiente e seus personagens, além de ser recheado de referências políticas e tecnológicas. Foi com um certo preconceito que compareci à palestra. Um preconceito invejoso e complexado. Afinal, ela era jovem, linda e culta. Ninguém pode ser tão perfeito. Eu haveria de encontrar uma falha. Pela dificuldade de entendimento que tive ao ler sua entrevista, comecei a suspeitar que ali estava a luz no fim do túnel para o meu “problema”. Seria a escritora argentina mais um desses seres intelectualóides, polêmicos e desprovidos de lógica que alguns cultuam com adoração? Meu complexo de inferioridade assombrava-me, porém, quando então eu era tomada pela impressão de que talvez a incapacidade não fosse dela, mas sim minha, em alcançar o sentido de um discurso tão, tão, tão... indescritível! O receio era reforçado pelo fato de que a escritora já fora consagrada por tantos e que estes tantos eram críticos, escritores e jornalistas que aparentemente sabem muito bem sobre o que falam. Então ela abre a boca, e de novo, e de novo. E eu confesso: não entendi nada. Forcei a concentração, mas meu pensamento teimava em fixar-se na aparência de Pola. Alta, magra, branca. Cabelos negros, muito bem maquiada. Uma blusa preta de tecido fino e transparente, meia-calça preta, ankle-boots pretas e uma saia vintage azul anil. Ela era esteticamente uma Amy Winehouse que deu certo. Com todos os dentes e pele perfeita. Encantadora e sexy. Sua forma pra mim era clara, seu conteúdo, no entanto, obtuso. Com a inveja e o preconceito postos de lado, empreendi esforços sinceros para tentar entendê-la. Era “experimental” demais até para mim, uma admiradora contumaz de “rule breakers” e “trouble makers”. Enquanto ela falava, eu como de hábito em exposições e palestras, buscava anotar suas ideias. Quarenta minutos passados e eu tinha duas linhas e se me perguntassem sobre o que falava eu apertaria um lábio contra o outro e a contragosto admitiria: não sei. Olhei ao meu redor e vi meu desconforto espalhado em dezenas de outras faces. Os disfarces eram vários: alguém mexia na bolsa atrás de uma caneta imaginária, outros balançavam a cabeça em sinal de concordância, mais alguns de braços cruzados, corpo projetado tentando vencer a miopia da mente. As falas de Pola formavam um quadro desfocado para a maioria dos ali presentes. Pessoas começaram a levantar desgostosas e algumas visivelmente irritadas. Ao fim, resolvir dar a mim e a ela uma segunda chance, me enganando quanto à minha vileza em relação à escritora: comprei seu livro. Me sinto um pouco melhor. Finjo que tentarei compreendê-la enquanto torço para que isso nunca aconteça.

A FLIP ainda não terminou, mas meu coração já está um pouco apertado. Amei e odiei o evento, os escritores e seus egos inflados, os supostos leitores e seus egos mais inflados ainda, os chapéus panamás, os obesos bolos de brigadeiro e morango, a livraria caótica e os livros comprados que ficarão entulhados no armário por meses, valter hugo mãe (assim, minúsculo mesmo) – com quem eu casaria e ainda daria o filho desejado, apesar de não ser exatamente o tipo que me atrai  -, o canal, as tendas brancas, o cansaço, o frio, os poetas, os artistas de rua e os chatos de plantão. Saudades que duram até o ano que vem.








quarta-feira, 4 de maio de 2011

Maria das Dores do Mundo e Ela





O toque da campainha. Dim dom. Ela nada escutou. Dim dom. Suavemente, um toque elegante. Dimmm Dom, já um pouco mais exaltado. Toc toc toc. Tó tó tó tó toc. “Já vai, já vai”. Ela desperta, irritada e sonolenta se encaminha em direção à porta, suspendendo as calças do pijama, que lhe dão um ar circense. Calças largas, pelo menos duas vezes o seu tamanho, coloridas como se prestassem homenagem ao orgulho gay e extremamente confortáveis – ao deitar-se com elas, colchas, travesseiros e calças pareciam ter sido cosidos em um só confortável, macio e quentinho tecido –, os peitos soltos, sem nada que lhes restringisse o movimento, e os cabelos presos – já que havia desistido de tê-los curto, depois de muita disciplina – era assim que dormia. Tateou a cama, antes de abandonar o quarto procurando um moletom velho que lhe desse alguma dignidade.
Abriu a porta. Às sete da manhã, uma senhora por volta de seus quarenta cinco anos, muito bem vestida – o que lhe causou um leve desconforto -, bem maquiada e cheirando à Paris se apresentou: me chamo Maria. Segurava uma pequena valisa em uma das mãos, enquanto unhas de navalha serravam a palma de sua outra mão. Ela, ainda entorpecida pelas poucas horas de sono interrompidas, continuava parada à porta tentando entender o que se passava. Quem era aquela figura que a incomodava não só pela sua aparência, mas pelo horário em que se atrevera a tocar sua campainha.
Ela repetiu: sou Maria. Maria das Dores do Mundo.
Aquilo estava ficando cada vez mais esquisito, e ela não sabia se fechava a porta antes que a fulana pudesse falar a próxima palavra, e num átimo girava as chaves e voltava correndo para debaixo de seus cobertores como se aquilo fosse um sonho.
Mas, Maria foi mais rápida. Quase como se a atravessasse, Maria passou por ela e já sentava ao sofá. Arrancava os saltos e perguntava: você tem café?
A ela então ocorreu que não, ela não tinha café. Detestava café e qualquer pessoa que gostasse e lhe visitasse, quando tomava conhecimento do fato, caso pretendesse demorar mais em seu apartamento, corria ao mercado da frente para comprar seu próprio pacote do precioso energético. Por muitas vezes pensou no quanto gostaria de gostar de café, e tal qual aquela amiga que se dispôs a gostar de comida japonesa e hoje era, sincera ou não, frequentadora assídua de sushi bares, perguntava-se se algum dia poderia aprender a gostar de bebê-lo. Mas, não, ainda não gostava e nem tinha café em casa. A mulher suspirou contrariada e deu de ombros.
Maria suspendeu a valisa e lhe disse: "É sua, tome."
Ela replicou fracamente entre o cansaço do pouco tempo de sono e angústia pela qual ia se sentindo tomada: “Não quero!
- “Mas, então, me desculpe, quem é você?"
- “Maria”, ela respondeu como quem pergunta: és surda? - “Maria das Dores. Das Dores do Mundo.”
- “Sim, eu ouvi o seu nome. Não quero ser indelicada, mas, quem é você? O que você deseja?”
Maria apertou os lábios, elevando as maçãs do rosto, como quem não estava entendendo o que estava se passando. Franziu a testa. Seus cabelos longos, lisos, loiros caindo sobre os ombros. O corpo coberto por um elegante e estranho tailler amarelo, sapatos que pareciam saídos de um filme sobre a Revolução Francesa. Era tudo um exemplo tão real de nonsense que ela achou que se não havia enlouquecido era porque provavelmente ainda sonhava. Foi quando um leve arrepio lhe percorreu o corpo, ela sentiu o tronco esquentar e o coração acelerar como repique de bateria de uma escola de samba. Talvez a louca não fosse ela. Mas, se aquela madame não estivesse em suas condições normais de pressão e temperatura, se fosse alguma desequilibrada que simplesmente lhe batera à porta ao acaso e por falta do que melhor fazer, então, como livrar-se dela sem provocar algum dano, à si mesma, àquela mulher ou a qualquer pessoa? De repente, foi tomada de irritação: Por que ninguém lhe interfonara antes? Afinal, aquela estranha não poderia ter passado pela portaria sem autorização prévia. O pensamento emendou. Bem, ela poderia ser uma moradora do prédio. A raiva diminuiu, o receio voltou a ocupar seu lugar. Mas, que merda. Ela estava com sono e dentro de uma hora teria um compromisso, ao qual não poderia faltar e para o qual precisava estar minimamente disposta. Voltou sua atenção para a mulher que, há minutos já, encontrava-se na mesma posição: com o braço soerguido empunhando a valisa em sua direção. Ela, então, segurou a pequena mala e colocou-a na mesa. As mãos na cintura, encarou Maria, estava disposta a resolver aquele impasse, repetiu: - “Quem é você?”, já num tom mais impaciente. Maria voltou a encará-la e então falou: Mas, meu Deus, que pessoa confusa! Tudo bem, não vou importuná-la, só queria entregar a valisa.” “Posso beber um copo de água?”, já cozinha adentro, Maria abriu o congelador, retirou o gelo, tão naturalmente como se estivesse em sua própria casa, meteu-o no copo e este se pôs a encher na torneira. Bebeu cinco copos seguidos. 
A essa altura, ela teve uma vontade súbita e incontrolável de ir ao banheiro, como se aquele litro d´água tivesse sido ingerido por si própria e não por Maria. Mas, ainda teve tempo de pensar se seria uma boa ideia largar aquela mulher sozinha no meio da sala do seu apartamento. E se a louca (já a assumira desequilibrada, diante dos fatos) fosse uma piromaníaca e pusesse fogo no lugar enquanto ela estava ao toalete. A necessidade fez o ladrão. Sem tempo de achar a solução, achou o caminho para o banheiro. Três minutos depois saía apressada e encontrava Maria das Dores do Mundo deitada em sua cama, abraçada ao seu travesseiro, dormindo o mais pesado dos sonos. Pensou em acordá-la, pensou em chamar a polícia, pensou em interfonar para o porteiro, ligar para algum amigo, mas acabou voltando à sala e parou diante da valisa. O que haveria lá?
Era uma valisa comum, dessas que as mulheres usam para transportar cosméticos e maquiagem. Não era velha, nem nova. Não tinha logotipos de qualquer tipo. Preta. Resolveu segurá-la. Não era leve, nem era pesada. Cheirou. O mesmo cheiro de Paris de Maria. Chacoalhou a maleta. Ouviu um ding ding dong e sentiu algo rolar. Veio à sua mente as bolinhas azuis de meditação que comprara há dez anos em uma viagem à Austrália. Devolveu a maleta à mesa. Passou a mão direita pelo rosto, apertou o queixo com força, uma ação que repetia sempre que se encontrava tensa diante de um problema, como se aquilo pudesse lhe trazer uma boa ideia ou um ímpeto de coragem. Sentou no sofá. Rapidamente lhe ocorreu que pudesse ser uma bomba. A razão lhe negou tal possibilidade, afinal: quem teria interesse em matá-la? Não, essa hipótese não fazia o menor sentido. Mas, então, afligiu-se: o que fazia sentido naquilo que estava acontecendo? Não conseguiu decidir-se por algo. Os minutos se passavam. Ela só percebia o tempo graças ao silêncio por todo o apartamento que lhe permitia ouvir o tiiic tiiic tiiic do relógio de pulso que usava. Estranhou, se deu conta de que, de repente não escutava o barulho dos carros na rua, nem dos aviões cuja rota passava exatamente por cima de seu prédio.
De repente, percebeu o velho e conhecido sentimento que se apoderava dela quando sabia que precisava fazer algo logo, mas não sabia o que. Ansiosa, agarrou a mala com as mãos ding ding dong ding dong e colocou-a no colo. Com o zíper entre os dedos, foi abrindo devagar zzzzzzzuuuum. Agora, era só levantar a tampa. Respirou soltando o ar pela boca. Abriu: "Mas, que coisa, que coisa." Não sabia o que pensar, o que achar. Que coisa estranha e irritante. Tornou a fechar a valisa zzzzzzzuuuum. 
Voltou para o quarto, deitou-se ao lado de Maria, a abraçou e dormiu.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pouco sobre minha mãe...



Ela, entre simulando e sentindo súbita indignação, esbraveja: “vocês são um bando de filhos da puta, tudo filho da puta”. Uma gigante do alto dos seus 1,56m de altura, e fornida como uma bola caprichada de sorvete de creme na casquinha, ela briga diariamente com tudo e todos, mas sua principal adversária vai a nocaute todos os dias – a preguiça – quando se prepara para sua rodada diária de exercícios onde além de queimar a tensão e a energia acumuladas, avança de seu formato cônico rumo ao sonhado contorno de ampulheta.

Mamãe é confusa e complexa, como todas as pessoas, mas um pouco mais que elas. Explosiva e voluntariosa, sua aparência dócil na juventude não entregava sua personalidade beligerante nem sua mente “máquina de guerra”. Sim, mamãe é um cavalo de troia, de repente abrem-se os compartimentos e milhares de homenzinhos saem atacando por todos os lados.

Ela está deprimida, de um jeito próprio que subverte a palavra “depressão”. Meu irmão, aprovado em todas as universidades para as quais prestou vestibular, entendeu por bem cursar aquela que o manteria afastado dos olhinhos puxados de minha mãe, e isso foi um duro golpe para a sua alma galinácea. Afinal, podermos ser filhos da puta, mas “nós temos mãe” e ela está deprimida. Ou, talvez, angustiada, porque a depressão, senso comum, pressupõe redução de movimentos e ela anda mais agitada do que nunca.

Minha mãe é MÃE, uma mãe portuguesa, Maria. Uma mãe italiana, fazedora de espaguete, que gesticula, que manda, mas que obedece. Obedece aos seus cavalos, a seus instintos, ao seu instinto, o maternal. Entre tantas coisas aprendidas, dessa – ser mãe – ela nunca esqueceu. Entre tantos trabalhos iniciados, desse – ser mãe – ela nunca desistiu. Promovida ano a ano, ela é hoje uma “Chief Executive Officer” (CEO) da companhia do “pare, banha, alimenta, cuida, lava, passa, briga, educa, vibra e chora, surta e grita” que fundou.

Como toda boa mãe, a minha é Jocasta. Apaixonada por seus Édipos. Eu e minhas irmãs, versões geneticamente modificadas de mamãe, graças a pequena, mas relevante contribuição paterna, fazemos terapia em grupo na ânsia de superar o drama de ocuparmos o segundo lugar em predileção. E que ela não me ouça fazer tal confissão, senão passarei a noite sob os ecos de “figlia di una puttana”.

De dentro do quarto, envolvida em leitura eu escuto o barulho que vai de perturbador a irritante. É a segunda vez no mesmo dia que ela aspira o apartamento, num vai-e-vem obsessivo-compulsivo, sob a alegação de que não consegue habitar um chiqueiro. Vou ao meio da sala, sento e lambo o chão. Eu poderia fazer todas as minhas refeições ali, sem qualquer recipiente. Colocar o arroz no piso, derramar um pouco de feijão e “voilá”. Nem um único microorganismo pra compartilhar a refeição.

Na praia, sentadas em cadeiras, dividindo o mesmo prazer em sentir o sol torrar os miolos e a pele, relaxada, ela inicia uma prosa lenta, entre feliz e empolgada, por vezes sofrida, em que discorre acerca da vida e de seu amor incondicional pelos filhos, cinco. Um pacote de biscoitos de polvilho e uma água mineral depois, ela levanta, acerta a lateral do biquini e determina: hora de voltar pra casa para mais uma sessão de “trabalhos do lar”. Já na cozinha, intimada como colaboradora, abro a geladeira, meses de estoque de alimentos se espremem nas gavetas, onde eu procuro a carne que deverá ser preparada. Minha mãe nunca passou fome, pelo menos não literal. Talvez sua fome psicológica (?) justifique suas compras surreais. Suas idas ao supermercado, aliás, sempre representaram um grande sofrimento na minha infância e adolescência, ainda que não me desse conta à época. Constantemente pressionada por ela para que mantivesse um corpo razoavelmente magro, o apelo que os chocolates comprados e guardados em enorme quantidade no freezer era tão grande, que passei boa parte da vida gordota.

Ela é divertida. Suas risadas escandalosas ecoam por toda a casa, sua felicidade transborda quando está bem humorada. Invariavelmente a razão de suas alegrias é a própria família. É com um prazer despudorado e, às vezes constrangedor, que ela exibe orgulhosa os feitos da prole, para qualquer um que lhe apareça pela frente, saboreando de antemão a suposta inveja que filhos “tão bem criados” podem causar em pais mais desavisados e menos zelosos da educação de seus descendentes.

Minha mãe ama, enlouquecidamente. Tem a capacidade que só mães, e nem todas, têm de se reconstruir, tornar-se outra, se superar, por amor. Basta uma expressão diferente, um lamento, um chamado e ela deixar de ser tudo que é, pra ser somente mãe. Por dom, esquece-se de si mesma, e só tem olhos para o outro. Aguenta todos os desaforos, que outrora não ficariam sem resposta, por aqueles que ama. Dá-lhes os nervos, a voz, o fígado, os rins, o coração, se preciso for. Ela dá suas roupas, todas as vezes que eu e minha irmã nos metemos a vistoriar seus armários. Assim o faz por não poder dar sua própria pele. Escalpelar-se-ia, se pudesse, para nos cobrir.

Ela é imperfeitamente perfeita. Ela é imperfeitamente amada. Merecia mais. Como sempre acontece, um dia sua falta vai ser imensamente sentida e a culpa eventualmente habitará o coração daqueles que hoje a amam, imperfeitamente, mas deveras, porque a gente sempre acha que podia ter feito melhor, sentido melhor, vivido melhor.

Ela agora, fica mais sozinha, já são quatro os filhos migrantes, resta a pequena Bia. A pequena Bia que é mais uma prova de sua inesgotável habilidade para gerar e amar. Uma versão minúscula e aperfeiçoada de si mesma.