terça-feira, 18 de setembro de 2012

Reflexões pós-cirúrgicas

Lixo: apenas partes do corpo vestigiais e orgãos inúteis (ex. apêndice, amígdalas e  vesícula)


É o dia mais quente do inverno. Minha barriga dói. Deitada sobre ela, entediada, sou de tempos em tempos assediada por ondas de calor e culpa. O ventilador não traz alívio. Ele se aproxima, cruzando o pequeno corredor. A camiseta laranja velha e a cueca branca denunciam os anos de relacionamento: catorze. Ele me beija as costas, acha graça do modelo da calcinha e examina meus tornozelos. Sai do quarto e retorna em 10 segundos carregando uma lâmina cega de barbear. Eu emito grunhidos de irritação e alguma dor ao me mover enquanto tento mantê-lo perceptível aos olhos. Ele agarra minhas pernas e passa a raspar alguns pelos ralos. Eu me contorço pra evitar uma gargalhada e a barriga dói mais. Eu amo esse homem.

São 04 pequenos pontos roxos estampando uma piscina de pele cor de rosa.

Quando eu era pequena, e tive catapora, costumava me esconder no banheiro onde meu pai guardava nossa pequena farmácia para mexer nas agulhas descartáveis, as esterilizava com perfume e ia espetando, uma a uma, as bolhinhas sobre a pele. Sempre gostei de experimentos do tipo: estourar bolhas, espremer machucados, arrancar casquinhas, apesar de ter renegado a medicina como ganha-pão.

Cada ponto roxo é coberto por uma capinha plástica, grudada à pele, tão grudadinha que a custos contenho o ímpeto de ir deslizando a unha por baixo, descolando o tecido transparente que começa a sair do lugar.

Sinto-me um pouco grávida ao contrário. O parto fora feito, mas a barriga inchada e os incômodos vieram depois. Eu pari umas pedrinhas e alguns pedaços de vesícula, abandonados em um potinho transparente que repousa sobra a mesa de jantar. Ainda no hospital, eu achei aquele souvenir pós-cirúrgico um tanto mórbido, quis abandoná-lo na lata do lixo, tal qual certas mães desalmadas o fazem após parirem as crias, mas não consegui. O fruto do meu ventre foi recolhido pelo marido, preocupado com gentilezas: “eles tiveram o trabalho de separar em um vidrinho e etiquetar, eu não poderia deixar lá”.

Agora, meu mundo cai e a barriga dói.

São contas de bancos a entrarem de greve, uma cozinha que não se monta sozinha, decisões pesando sobre o pescoço como guilhotinas e um medo grande, bem muito grande do futuro próximo.

A sexta-feira chegava com o emprego novo, e o meu corpo confundido pelas minhas expectativas, resolveu ele mesmo me dar trabalho.

Corremos todos ao hospital, eu e a família onipresente. Horas de espera e nenhuma dor – graças às ironias da vida, 04 buscopans e um metabolismo garfieldiano. Optou-se pela mutilação.

Já na sala de cirurgia, dopada, eu sabia o que estaria por vir, mas não antecipei os desdobramentos. São 04 singelos furos. Por um deles me enchem de ar, que nem balão de aniversário; pelos outros três cortam e recortam o saquinho quase inútil que deu pra me sacanear. Eles te enchem de gás carbônico, e depois ficam com preguiça de chupar o resto de volta, aí você fica assim, parecendo bexiga de fim de festa.