sábado, 9 de julho de 2011

Minha primeira FLIP, lembranças da infância, uma amiga altruísta e Pola Oloixarac


Eu andava excitada com a ideia de ir à Paraty. Fazia anos que alimentava a curiosidade em relação à festa literária. Mas, como vontade dá e passa (quase sempre), o plano de ir ao evento ia ficando de lado. Mas, diferentemente do que ocorreu com a minha vontade de conhecer o carnaval em Salvador, que com o passar dos anos “mó-rreu”, a vontade de ir a Paraty ganhou força esse ano, sobretudo depois que desenvolvi uma nova obsessão em minha vida: realizar cursos e mais cursos de jornalismo e literatura; e, em anexo, uma compulsão por comprar livros razoavelmente controlada por dois fatos: ausência de espaço doméstico para armazenamento e total incapacidade de ler o presente estoque num período inferior a vinte e quatro meses.

Enfim, lá me fui.

Uns dias antes da viagem, fuçando blogs, me deparei com um texto do jornalista Antônio Prata, em que ele falava de suas lembranças de infância acerca de viagens que fazia ao interior de seu estado, na companhia do pai, para visitar parentes. Ele comentava em detalhes as estratégias do genitor para manter os filhos entretidos durante todo o percurso, mantendo as ansiedades em um nível razoável. Daí que me lembrei que eu também passei uma boa parte da infância indo e vindo do litoral alagoano, onde eu morava, ao sertão pernambucano, onde moravam meus avós paternos, por longos e intermináveis caminhos, os quais, com alguma sorte, podíamos considerar estradas. Entre buracos, muita areia, alguma lama e áreas inundadas por pequenos córregos, rezávamos para o chevette à álcool não atolar, nem afogar. Minhas lembranças mais antigas sobre estes fatos são realmente antigas. Isso porque, conforme me lembro, na época, costumávamos ir, eu e minha irmã, durante todo o caminho, deitadas no banco traseiro, em posição de conchinha. Considerando que, há muito, nossos corpinhos singelos, mesmo solitários, já não cabem naquele espaço, é indubitável que desse período de nossas vidas já se vai um bom tempo.

Mas, rememoro com prazer a grande excitação que sentia ao vislumbrar algumas cenas pelo caminho. Sou dotada de uma imensa e, às vezes, terrível facilidade para imaginar coisas, que via de regra extrapola em muito minha habilidade para me expressar. Daí que quase sempre padeço de uma grande agonia, daquelas que se sente quando a ideia não encontra a palavra. O que mais consumia minha atenção, além das vacas que costumava contar, era o sem número de velhas construções abandonadas no meio do nada. Alguns casarões cujas paredes pareciam lambidas por uma língua negra, semi-destruídos e tomados pelo mato, num átimo, se transformavam em “casas-grandes” de um passado colonial fantástico e menos perverso que o histórico. Num vai e vem contínuo entre ficção e realidade, eu criava fantasmas que perambulavam por esses esqueletos de concreto arrastando suas correntes e chorando amores perdidos. Delírios tão clichês quanto os de qualquer menina.

Na estrada para Paraty, tão diferente daquelas pelas quais costumava viajar quando criança, nenhuma casinha quebrada que gritasse por minha atenção. Só sono, revistas e um adolescente de cerca de 14 anos que viajava ao meu lado sem muita certeza de para onde estava indo. Passou rápido, um pulo do ônibus ao táxi que me levaria a pousada onde estou hospedada. Joguei as malas no chão, cerrei a porta, devolvi as chaves e um pulo da pousada ao centro-histórico da cidade. Lindo! Como passei tantos anos, 30, sem ter posto os pés nas ruas de pedra de Paraty!? Ia ao encontro de uma amiga, uma mocinha fofa, pós-moderna e pós-balzaquiana, que me aguardaria em uma casa onde veríamos juntas uma palestra, debate ou conversa, da qual faria parte um ex-professor comum. No entanto, contando com a astúcia, mas sem descontar a sua incrível capacidade de distração, depois de em vão me debater à procura do lugar, resolvo telefonar para saber de seu paradeiro exato. Ando, ando, ando. E para minha estupefação, ela, que ao telefone insistia estar no lugar combinado, se encontrava em meio a um grupo masculino, numa sala minúscula de uma das dezenas de casinhas centenárias, espalhada em uma cadeira, braços cruzados e um ar inocente e curioso, acompanhando uma discussão insustentável e um tanto insuportável acerca das capacidades dos indivíduos ali pousados, supostos poetas blogueiros ou blogueiros poetas, que se gabavam ora de seus dotes artísticos, ora dos inúmeros 2 ou 3 comentários elogiosos que recebiam em suas páginas virtuais de poesias realmente chatas.

Eu avanço constrangida e me jogo sobre a cadeira em frente à dela. Ladeada por dois desses poetas blogueiros ou blogueiros poetas, a síndrome das pernas irriquietas se manifesta e aumenta de intensidade na proporção do ritmo das palavras trocadas entre os dois seres que não sabem se me ignoram ou me incluem. Rezo pela primeira opção. Minha amiga pisca, devolvo um sorriso amarelo. Ela levanta: Vou ao banheiro! Minha mente é mais rápida que meu corpo, mas alguns minutos depois eu a busco no corredor. Ela diz: Sabe que eu acho que tô no lugar errado! Retruco sardônica: Eu não acho, tenho certeza! Admirada: Pois é, achei estranho que ninguém aqui conhece o professor! Eu, agoniada: Então vamos sair daqui!? Ela volta relaxada para a mesma posição e sorri. Penso comigo: Enlouqueceu! Devem ter dado o cigarrinho do capeta enrolado em folhinhas de livro de poesia pra ela fumar. Olho suplicante para a filha dela que nos acompanha e alheia segue a discussão(?) sentada no sofá: Tenho fome! Ela levanta e se oferece para ir comigo ao restaurante. Retorno o olhar ainda suplicante para minha amiga, ela sorri, levanta e abaixa a cabeça calmamente e susurra: vai, vai.

Algumas horas depois, minha querida amiga, essa cruza masoquista de Poliana e Madre Tereza de Calcutá, dando de ombros, comenta: Até que eles falaram algumas coisas legais. Tem um cara lá, deve ter uns 30 anos, já escreveu 20.000 poesias. Repete: 20.000 poesias!!! Aparentemente em uma espécie de transe ele é capaz de escrever por horas sem fim. Emenda rindo: Um outro rapaz falou que o que ele faz deve ser psicografia. PSICOGRAFIA. Ela gargalha. Tirou o mérito do coitado, explica. Cabreira, pergunto a ela porque ficara tanto tempo ali. Ela me diz que ficara tocada e se sentira mal em deixar o lugar. Pela mesma razão, minha amiga adquire tudo e qualquer coisa que lhe oferecem por lá, de literatura de cordel a canetas de um senhor que diz precisar de dinheiro para sua formatura em breve no curso de medicina.



De palestra em palestra, chego à mesa de Miguel Nicolelis e Luiz Felipe Pondé. Excelente! MN é um senhor nem alto, nem baixo, grávido de uns 7,8 meses, vestido nas cores de seu time do coração, o palmeiras, semi-careca, óculos, tranquilo e dotado de uma positividade e simpatia cativantes. Quando inicia sua apresentação, temos à frente um Lair Ribeiro da neurociência. O homem é fantástico e eu quase decido mudar, mais uma vez, de carreira e me inscrever em um dos cursos de seu Instituto em Natal. LFP é um homenzinho estranho. Careca, óculos, uma barbicha branca e vestido de negro. Tem um ar taciturno, que logo se esvaece quando abre a boca. Afetado e inteligente, faz colocações óbvias de maneira brilhante: “O que caracteriza o ser humano é o sofrimento” “O que humaniza o ser humano é o fracasso”. Como todo bom filósofo, sua retórica é incrível. Inicia-se uma luta. MN defende os milagres da ciência, fala da libertação do cérebro humano da prisão do corpo, cita Santos Dumont e divide sua grande expectativa: Na abertura da Copa do Mundo pretende ressuscitar Lázaro. Visualiza uma criança tetraplégica, chutando em direção ao gol, usando uma armadura de fazer inveja aos antigos soldados romanos, remotamente controlada pelo som de suas tempestades cerebrais. LFP bate, rebate. Direita, esquerda, direita esquerda, um cruzado no queixo: “O projeto de eugenia faz parte da utopia ocidental desde os tempos de Platão.” Ele diz que o objetivo é que pessoas ultrapassem os limites da dor, do sofrimento, da agonia. O embate continua, mas MN se deixa apanhar. Apenas acompanha com um leve sorriso o a sequência de batidas do companheiro de palco. MN tem na ciência sua religião. Se orgulha dos resultados obtidos através de experimentos: "Milagre deveria ser palavra adotada pela neurociência, porque nesse departamento fazemos umas coisinhas melhores". Segue o embate entre otimista e pessimista. Discutem-se paradoxos. Ciência e Religião, Ciência e Eugenia. Felicidade e Sofrimento. Melancolia e Alegria. Os debatadores se apegam às suas opiniões, mas LFP é visivelmente o mais maniqueísta. Sabe Deus o porquê, já que é um filósofo apto a lidar com paradoxos. Nenhuma das considerações feitas por ambos se contradiz no fim das contas. Não pode a evolução da ciência eventualmente ser vista como um milagre de Deus? (ou vice-versa) Já não se sabe que em tudo que se faz há riscos, e a eugenia é uma possibilidade nesse processo de busca humano pela perfeição e pelo fim da dor? E são os riscos e os medos motivos razoáveis para não se buscar o melhor, sob a justificativa de que do melhor pode se advir o pior? A explanação das teses e antíteses foram ótimas, mas saí com a sensação de que faltou a síntese. Ah, no fim, aparentemente, MN ganhou por nocaute dizendo que se Santos Dumont, o símbolo que acompanhou todo o seu discurso durante a mesa, tivesse entrado na escola (o pequeno não concluiu os estudos), teriam convencido nosso gênio de que a ideia de voar era um sonho maluco, e que então “ele teria talvez estudado filosofia, aprendendo a não fazer nada”.



Dia seguinte, sigo curiosíssima para a mesa com a escritora argentina Pola Oloixarac, a “musa da FLIP 2011”. A vinda da guria vem sendo celebrada há meses. Na lista da Granta (revista renomada especializada em Literatura), entre os melhores jovens escritores de língua espanhola, com críticas positivas e livro (Teorias Selvagens) publicado em diversas línguas, a jovem de 33 anos é muito bonita e carismática. Semanas atrás eu havia lido uma entrevista com ela e fiquei incomodada. Até aquele momento não sabia que tal figura existia. Entre outras coisas, ela falava de sua obra, numa linguagem incompreensível para mim, e levantava questões retóricas como: “Não se pode ser linda e inteligente?” Formada em filosofia e conectada ao meio acadêmico, seu livro supostamente ironiza esse ambiente e seus personagens, além de ser recheado de referências políticas e tecnológicas. Foi com um certo preconceito que compareci à palestra. Um preconceito invejoso e complexado. Afinal, ela era jovem, linda e culta. Ninguém pode ser tão perfeito. Eu haveria de encontrar uma falha. Pela dificuldade de entendimento que tive ao ler sua entrevista, comecei a suspeitar que ali estava a luz no fim do túnel para o meu “problema”. Seria a escritora argentina mais um desses seres intelectualóides, polêmicos e desprovidos de lógica que alguns cultuam com adoração? Meu complexo de inferioridade assombrava-me, porém, quando então eu era tomada pela impressão de que talvez a incapacidade não fosse dela, mas sim minha, em alcançar o sentido de um discurso tão, tão, tão... indescritível! O receio era reforçado pelo fato de que a escritora já fora consagrada por tantos e que estes tantos eram críticos, escritores e jornalistas que aparentemente sabem muito bem sobre o que falam. Então ela abre a boca, e de novo, e de novo. E eu confesso: não entendi nada. Forcei a concentração, mas meu pensamento teimava em fixar-se na aparência de Pola. Alta, magra, branca. Cabelos negros, muito bem maquiada. Uma blusa preta de tecido fino e transparente, meia-calça preta, ankle-boots pretas e uma saia vintage azul anil. Ela era esteticamente uma Amy Winehouse que deu certo. Com todos os dentes e pele perfeita. Encantadora e sexy. Sua forma pra mim era clara, seu conteúdo, no entanto, obtuso. Com a inveja e o preconceito postos de lado, empreendi esforços sinceros para tentar entendê-la. Era “experimental” demais até para mim, uma admiradora contumaz de “rule breakers” e “trouble makers”. Enquanto ela falava, eu como de hábito em exposições e palestras, buscava anotar suas ideias. Quarenta minutos passados e eu tinha duas linhas e se me perguntassem sobre o que falava eu apertaria um lábio contra o outro e a contragosto admitiria: não sei. Olhei ao meu redor e vi meu desconforto espalhado em dezenas de outras faces. Os disfarces eram vários: alguém mexia na bolsa atrás de uma caneta imaginária, outros balançavam a cabeça em sinal de concordância, mais alguns de braços cruzados, corpo projetado tentando vencer a miopia da mente. As falas de Pola formavam um quadro desfocado para a maioria dos ali presentes. Pessoas começaram a levantar desgostosas e algumas visivelmente irritadas. Ao fim, resolvir dar a mim e a ela uma segunda chance, me enganando quanto à minha vileza em relação à escritora: comprei seu livro. Me sinto um pouco melhor. Finjo que tentarei compreendê-la enquanto torço para que isso nunca aconteça.

A FLIP ainda não terminou, mas meu coração já está um pouco apertado. Amei e odiei o evento, os escritores e seus egos inflados, os supostos leitores e seus egos mais inflados ainda, os chapéus panamás, os obesos bolos de brigadeiro e morango, a livraria caótica e os livros comprados que ficarão entulhados no armário por meses, valter hugo mãe (assim, minúsculo mesmo) – com quem eu casaria e ainda daria o filho desejado, apesar de não ser exatamente o tipo que me atrai  -, o canal, as tendas brancas, o cansaço, o frio, os poetas, os artistas de rua e os chatos de plantão. Saudades que duram até o ano que vem.








6 comentários:

Everyn Palhares disse...

grávido de uns 7,8 meses HAHAHAHA...Morri

Texto perfeito as usual...Fiquei intrigada tbm com essa argentina afff...E pq vc nao citou a escritora paki?

Semifosco disse...

Minha vez de retribuir a visita.

Então odiou, mas "a saudade durará até o ano que vem"? Pois é. A Flip é contagiosa, apesar dos chapéus Panamás, dos charutos e dos egos inflados. Espero que tenha fugido de algumas palestras porque, como costumo dizer, a festa é a desculpa ideal para estar em Paraty (mas não necessariamente em qualquer uma das tendas rs,rs,rs Melhor é estar na praia, em Trindade, passeando de escuna, dando uma volta de bicicleta ou simplesmente batendo perna). Balanço final? Gostou?

Semifosco, míope e resiliente

Maria disse...

Pois é! Por inexperiência eu acabei comprando mais palestras do que era capaz de assistir. Saquei isso no segundo dia, quando já estava morta de cansaço e de conversa. Daí, relaxei, larguei mãe de ver algumas mesas e fui passear pela cidade. É linda! E a feira eu amei tbm. Ano que vem, se tudo der certo, tem mais...
Obrigada pela visita!

Maria disse...

@Moka,

Vou ler o livro e faço um post sobre ela depois! Prometo!

bjoo,

Marcia Faria disse...

Por acaso,hoje vi uma entrevista dela na tv e achei estranho.Pensei que o problema fosse meu,o ego ficou tão triste (rsrs) Que alívio quando li o seu texto.obrigada!!!(rsrsrs)Bj

Maria disse...

Oi Márcia, pois é, eu entendo o sentimento! rsrsrs Foi parecido com o que senti qdo vi um post de opinião semelhante no blog semifosco.blogspot.com
Obrigada pela visita!
bjo