domingo, 10 de junho de 2012

Apna dil tum may hay: Meu coração está com você


“Ninguém consegue permanecer indiferente ao Paquistão. É como um divisor de águas: de um jeito ou de outro. Ou estrangeiros o rejeitam de pronto: sem casas noturnas, sem danças, sem diversão; mulheres são dificilmente vistas nas ruas, sem sorrisos; ou o Paquistão os domina e se torna um fator para o resto de suas vidas.
O Paquistão é um país de extremos. Tem as montanhas mais altas e os mares mais profundos. Tem as planícies mais férteis e os maiores desertos. Nele existem paisagens de aparente esterelidade lunar de onde vêm as frutas mais suculentas. Há neve, e 150 dias de calor ininterrupto por ano. Conhece os Sete anos de Seca – assim como as enchentes das monções que inundam milhares de vilas todos os verões. É casa de uma massa cada vez maior de famintos, assim como desses que são – ou tem se tornado – excessivamente ricos; os maiores materialistas próximos aos mais devotos, almas místicas aos montes. Pode mostrar a face da imensa tolerância e, no minuto seguinte, a careta do ódio mortal. Possui os mais estritos código de honra e regras religiosas e comete os mais hediondos crimes.
Não é um país para “pesos leves”. Pense nas majestosas montanhas do Himalaia sobre cujos pés o país se espalha: este é o ânimo. Mesmo a sua beleza é solene e poderosa.” (Karin Mittmann & Zafar Ihsan)

  

            Talvez um complexo, daqueles estudados pelo pai da psicanálise e seus discípulos, possa explicar a origem da tamanha fascinação, que vi despertada na infância, por países longínquos e esquerdos, de idiomas vasconços e de culturas tão herméticas quanto inusitadas.        
Cresci apaixonada pelo meu pai, por seu caráter, por sua inteligência e por sua generosidade. O fato de o homem nunca ter saído do país não impediu que sua mente viajasse através da literatura, da música e do cinema. Não é preciso sair de seu mundo para aprender a tolerância. Por mais que conhecer lugares novos seja “fatal para preconceitos, para o fanatismo e para mentes estreitas” (Mark Twain), algumas pessoas se tornam capazes de compreender o outro através do mero exercício do auto-conhecimento e da compaixão.
            Na ânsia de me fazer amada, e especial em meio a tantos filhos, observava atentamente suas ações, absorvia tudo o quanto dizia, estudava suas atitudes e interesses, e buscava reproduzir seu comportamento. O maior dos prazeres era ter meu esforço reconhecido, não só pelo meu pai, mas por todos os que nos cercavam. Nesses momentos, eu era realmente filha dele.
            Espiritualizado, lia avidamente sobre culturas orientais e suas práticas. Foi através de suas palavras e de seus livros que conheci o Japão budista, a Índia hindu de Gandhi, os monges tibetanos, técnicas de meditação e yoga, e tantos outros personagens e elementos característicos do leste do mundo. Foi ainda na infância que tracei o plano: tão logo me tornasse adulta e ganhasse meu próprio dinheiro, levaria meu pai em uma viagem só nossa pelo Oriente. Iríamos ao Nepal, meditar em uma daquelas cavernas nas montanhas, descritas nos livros que ele guardava.
            Os anos passaram, e a paixão que eu sentia por aquele homem se transformou em amor. Superei algumas de minhas visões tipicamente freudianas sobre a relação pai e filha, vislumbrei sua humanidade, e deixei que a ideia infantil da viagem em conjunto se transformasse em uma doce lembrança. Somente algo permaneceu imutável, a curiosidade que meu pai ajudou a despertar pelo diferente.
            Ele jamais saiu do Brasil, e hoje tenho dúvidas se algum dia o fará, entre as alegações, falta de tempo e condições financeiras, mas creio mais em um misto de receio e desinteresse. Ele há muito se satisfaz com a narração dos filhos, que vez ou outra vão pelo mundo, provocados pela abertura de mente que ele nos proporcionou quando crianças.

Austrália: Meus primeiros Paquistaneses

            Em meados de 2001, aos vinte anos de idade, pelo telefone, recebo um convite.
Estava em Sydney, Austrália, havia cerca de um mês. Ainda desbravava o lugar e não conhecia muitas pessoas além daquelas que ajudaram no processo de instalação da minha família no país. Minhas aulas não haviam começado e me sentia entediada e insegura em casa, enquanto meu padrasto trabalhava – ele fora transferido por dois anos para uma filial de sua empresa em Sydney – e minha mãe fazia do apartamento que vivíamos um lar. Navegando na internet, buscava brasileiros com os quais pudesse me comunicar, e que estivessem por lá. Queria amigos. Sair sozinha não era uma opção. Curiosamente não encontrei de pronto compatriotas, mas um rapaz abriu em minha tela de computador uma janela de conversa. Falamos brevemente, hoje já não me recordo mais o que, mas lembro que insistiu para que eu lhe desse meu número de telefone. Não fosse o tédio e a curiosidade, eu teria seguido as regras de segurança que ditam jamais relatar a um estranho qualquer informação pessoal.
O moço se chamava Tanvir, soava gentil e educado, era engraçado e me chamou para sair. Antes da negativa – dar o número de telefone já havia sido um excesso de minha parte –, me senti compelida a perguntar-lhe a origem. Na Austrália, um país mais jovem que o Brasil, todos são imigrantes. Ele respondeu: “Nepalês.”
Às 20h de um sábado, Tanvir tocava a campainha do meu apartamento e pedia permissão à minha mãe e padrasto para me levar para jantar. A situação toda era esquisita e anacrônica. Apesar de jovem, era adulta e estava acostumada a apenas comunicar à família os lugares a que estava indo e, algumas vezes, com quem estava indo, prescindindo da autorização ou não dos meus pais. Mas, havia a singularidade da situação: estava em outro país, saindo só pela primeira vez, com uma pessoa que não conhecia e que se dizia nepalês. Minha mãe, que nunca se interessara pelos livros do meu pai, contorcia o rosto um tanto desesperada quando me questionava: “Mas o que é um nepalês?”
            Na verdade, eu mesma sabia muito pouco sobre o que era ser um nepalês. Não mais do que havia lido em livros sobre meditação e revistas de viagens. Até então, imaginava que Nepal e Tibete fossem uma coisa só. Assim, era difícil explicar pra minha mãe o que era aquele rapaz pequeno, de olhos amendoados, olheiras profundas, dedos afilados, cabelos lisos e negros e pele azeitonada. Só mais tarde, bem mais tarde, eu pude dizer quem e o que ele era.
            Tanvir se tornou meu melhor amigo durante minha vida de expatriada. Era doce e delicado, engraçado e cheio de segredos. Muitos anos depois, quando já havíamos perdido contato, descobri que não era nepalês, era na realidade bengali. Nunca entendi ao certo suas razões para a mentira, mas especulo que tenha qualquer coisa de intuitiva sua resposta no dia que primeiro nos falamos por telefone. Talvez tivesse sido honesto em relação à sua origem e não tívessemos nos tornado tão próximos. Ele me disse o que eu queria ouvir para poder me oferecer o que eu precisava, amizade. É assim que vejo hoje a questão.
            Sydney tem uma boa parte de sua população composta por asiáticos, que migraram em massa para a Austrália por volta dos anos 70. São chineses, japoneses, indianos, paquistaneses, bengalis, entre outras nacionalidades.
            Em minhas aulas de inglês, éramos uma brasileira e 11 sul-coreanos. Durante os intervalos eu escutava as conversas, presenciava as confraternizações, enquanto tentava fazer a leitura corporal dos meus colegas e entender minimamente o que se passava. Uma das coreanas se tornou minha amiga. O nome, impronunciável, cedeu lugar ao apelido inglês Sunny, “Ensolarada” em português. O substantivo-adjetivo dizia muito sobre a menina pequena de olhos puxados. O pai havia ficado na Coreia do Sul e de lá providenciava o sustento dela, da mãe e da irmã, que tentavam se ajustar sozinhas a um novo país, de cultura e língua bastante complicadas para elas. Apesar das dificuldades rotineiras, Sunny era alegre e otimista. O sotaque carregado e as dificuldades em pronunciar palavras para as quais a musculatura dos lábios e da língua não havia sido trabalhada, faziam nossos momentos juntas oscilarem entre a diversão e a frustração. Às vezes, passávamos longos minutos tentando nos decifrar e muitas vezes, sem falar palavra, sorríamos cúmplices ao compartilhar um mesmo pensamento.
            Meses após minha chegada à Austrália, Sunny me liga contando uma novidade, estava namorando um rapaz e queria muito que eu o conhecesse. Combinamos uma tarde à beira da baía, na região portuária de Paddington, em frente à uma famosa barraca de tortas apimentadas de carne. Fui encontrar o casal na companhia de Tanvir. Sentados na calçada, com as pernas balançando sobre as águas, conversávamos enquanto o sol partia. O namorado novato faz então um comentário, marcando aquele momento: “Vocês se deram conta de que somos todos diferentes? Um libanês, uma coreana, um nepalês (bengali) e uma brasileira, juntos aqui!?” Não tenho lembrança das palavras exatas usadas por ele, mas a questão era essa, mais ou menos solenemente apresentada. E ao tomar consciência da verdade do que ele dizia fui invadida por imensa sensação de prazer, que se repetiu ao longo dos anos em cada vez que entrei em contato com uma cultura, uma língua, uma religião ou um modo de pensar diverso.
            Durante todo o período que permaneci em Sydney, Tanvir foi meu companheiro. Através dele conheci realidades as mais diversas da minha e me abri para a compreensão de mundos além do meu. Acompanhei seu sofrimento quando do ataque em 11 de setembro, mas por conta de suas omissões e da minha visão limitada dos fatos, não entendi em sua totalidade o significado daquele turning point na vida dele e de milhões de pessoas ao redor do mundo. Como mais tarde descobri, Tanvir que não era nepalês – até hoje não sei se algum dos seus familiares o era – , havia nascido em Bangladesh. Seu país, após a partilha da Índia, passou a se chamar Paquistão Oriental, de população majoritariamente muçulmana e, mais tarde, tornou-se independente, assumindo nome próprio. Após a queda das torres, viu-se crescer o sentimento islamofóbico ao redor do mundo, mais ou menos justificado pela morte dos milhares de inocentes vitimados no atentado. Por conta disso, ainda outros inocentes passaram a sofrer em decorrência do ato fundamentalista. Os próprios muçulmanos, uma imensa massa de gente que nenhuma relação guardava com o ato extremo, passaram a ser vistos sob suspeita e a enfrentar o rancor de boa parte da população mundial.
            Entre tantas novidades e descobertas, passei mais ou menos alheia pelos eventos que punham o mundo em turbulência naquele período. Na mesma época, em um passeio pela praia, vislumbrei do carro um grupo de pessoas vestidas de branco dos pés à cabeça. O que trajavam se assemelhava a um pijama, enquanto que na cabeça traziam um pequeno chapéu ajustado ao crânio. Falavam alto, uma língua dura e difícil. Fiquei bastante impressionada e Tanvir me explicou que eram paquistaneses. Imediatamente os associei à imagem recorrente na mídia, após o 11 de Setembro, do velho barbudo e diabólico, e tive medo.

Brasil: Mulheres que amam Paquistaneses

            Alguns anos mais tarde, já de volta ao Brasil e à rotina de estudos e trabalho, passei a pesquisar continuamente sobre países asiáticos. Minha lista de contatos em redes sociais só crescia em função do número de pessoas das mais variadas origens que eram pouco a pouco adicionadas. Gente da Índia, Singapura, da Turquia, Indonésia e Paquistão.
            Minhas manhãs de sábado eram passadas em conversas com um paquistanês de Lahore, a capital da província paquistanesa de Punjab. Com ele aprendi um monte de coisas sobre o país, sobre a cultura e modo de vida paquistaneses. Aos poucos, a associação entre o terrorista Bin Laden e os homens de branco que eu havia visto na praia australiana ia se desvanecendo.
            As diferenças culturais e religiosas me intrigavam. Islamismo, Ramadã, gerações de uma mesma família morando juntas, casamento arranjado, abstinência sexual e alcóolica, comida halal, mulheres cobertas, poligamia, eram temas recorrentes e controversos que me custavam horas de debate com o amigo lahori. Enquanto eu me esforçava para entender casamentos realizados sem paixão e sem amor, ele se recusava a aceitar minhas justificativas para o grande número de divórcios deste lado do mundo. Enquanto eu desdenhava de seus programas de fim de semana: pepsi-cola com amigos, homens, em saguões de hotel; ele eriçava os cabelos diante das minhas narrativas de baladas com amigos, homens e mulheres, sempre, ao fim, assumindo o compromisso de rezar pela minha alma para que minha escala no inferno não fosse duradoura a ponto de comprometer minha felicidade eterna.
            No segundo semestre de 2008, decidi sair de férias. Uma das minhas melhores amigas havia casado há um ano e estava morando nos Emirados Árabes, em Dubai. Sem objetivos definidos, me convenci a ir visitá-la. Quando contei a novidade ao amigo paquistanês, fui logo intimada a estender meus planos e passar alguns dias em Lahore, para nos encontrarmos e ele poder me mostrar in loco um pouco de tudo aquilo que há anos ele me apresentava. Obviamente ri do convite, afinal, sempre fui aventureira, mas não suicida. Naquele ano o Paquistão estava em polvorosa, forças contrárias tentavam derrubar o ditador no poder, enquanto homens e bombas explodiam por todo o país matando centenas de pessoas em retaliação à política do governo autocrático, de apoio irrestrito aos norteamericanos em sua “guerra ao terror”.
            Declinei do convite, para a tristeza do meu amigo, mas fiquei inquieta. Alguns dias pensando e concluí que realmente queria ir até lá, imaginando se haveria algum modo seguro de fazê-lo. A oportunidade era ideal. Lahore ficava a apenas três horas de voo de Dubai e eu teria tempo suficiente para me dividir entre os dois lugares se eu quisesse.
            Diante da nova possibilidade, comecei a investigar maneiras de chegar ao Paquistão e poder circular com relativa segurança. E me questionava se haveria brasileiros no país com os quais eu pudesse me comunicar e buscar mais informações. Para meu choque e surpresa, localizei um número razoável de pessoas, todas elas mulheres, brasileiras, em relacionamentos com homens paquistaneses. Um grupo heterogêneo de moças cujo ponto em comum era a origem de seus maridos e namorados. Aproximei-me de Cintia, que morava em Lahore com o marido e estava grávida da primeira filha. A curitibana, descendente de japoneses, havia conhecido o paquistanês pela internet, se apaixonara e abandonara a vida estável no Japão para viver o amor em outra terra estrangeira.

Dubai (2008): Contagem Regressiva

            Aterrissei em Dubai fim de outubro de 2008. O ar quente e denso à porta da aeronave entregava o imenso deserto a partir do qual se erguera o rico emirado. O alívio após longas horas de voo sobrepujou o cansaço e eu competia em sorrisos com a amiga querida que me aguardava no desembarque. A mulherzinha baixa e de voz estridente, acostumada ao controle daqueles a quem tinha afeto, apontava o dedo e rosnava, amaldiçoando meus planos de ir ao país vizinho.
Superexcitada pelas luzes e imagens ao meu redor, eu mal percebia suas feições e os sons das palavras. Homens robustos e morenos, com caras de poucos amigos, metidos em vestidos brancos, andavam agitados. O adereço da cabeça me remetia às paginas dos cadernos de política internacional e programas de TV onde havia visto imagens do antigo líder palestino Yasser Arafat. Mulheres de sobrancelhas longas e bem marcadas, olhos delineados e perfil encantador, vestidas em trajes negros que lhes cobriam todo o corpo também circulavam pelo ambiente, como contraponto ao colorido das vestes indianas e paquistanesas espalhadas em pequenas aglomerações por toda a área do terminal aeroportuário.
            Do estacionamento do aeroporto à casa da minha amiga, somente alguns minutos. E os dias voaram até a semana em que eu própria voaria novamente. Nesse meio tempo, programações turísticas em Dubai, pragas de amigos brasileiros, promessas de deserdação por parte da minha mãe e um princípio de pânico frente aos ataques que se intensificavam no Paquistão. Ninguém queria que eu fosse até lá, meu amigo paquistanês começava a se preocupar e o meu bom senso já se encontrava em estado de alerta.
            Cerca de um mês antes da minha viagem, terroristas tentaram ultrapassar a portaria de um dos maiores hotéis de Islamabad, a capital federal do país, dirigindo um caminhão-bomba. Bloqueados na entrada, explodiram em frente ao lugar, matando cerca de 60 pessoas, ferindo 200 e destruindo toda a fachada.
            Ciente dos perigos que corria, tentei minimizar os riscos. Pedi à nova amiga, Cintia, que localizasse em Lahore um hotel pequeno em área segura, para que eu pudesse me hospedar, desconhecido e irrelevante o suficiente para pretensos terroristas.
            A dois dias da partida para Lahore, agendei um encontro com Umair, o marido de Cintia, que coincidentemente se encontrava em Dubai. Pretendia resolver um problema burocrático de vistos que poderia impedir a minha ida ao Paquistão, ou meu retorno posterior aos Emirados. Ele conhecia os trâmites para a regularização da minha situação e iria me ajudar. Marcamos em um café, numa área em Dubai que é comparada por brasileiros à rua paulista “25 de março”.
Às 9h da manhã do dia acordado, sob protestos da minha anfitriã temerosa pelo meu encontro com um “desconhecido”, me dirigi ao lugar combinado, tomando o cuidado de ir trajada conforme as determinações da religião islâmica: um longo vestido marrom, ignorando o calor de quase 40 graus, um cardigã bege, e longo xále da mesma cor cobrindo braços e colo. Dois homens me aguardavam. O primeiro alto, jovem e magro; o segundo, mais baixo, mais velho e gordo. Ambos de pele escura e os olhos negros afundados em olheiras. Quando olharam em minha direção, sorri e acenei. Nos cumprimentamos com um movimento de cabeça, sem beijos, apertos de mão, ou qualquer outro contato físico a que ocidentais, em particular latinos, estão tão acostumados. Entramos em um carro, os dois na frente eu no banco de trás e seguimos em direção a Sharjah, um dos outros sete emirados que compõem o país, irmão mais pobre e desprovido de beleza quando comparado a Dubai.
Rodamos deserto adentro, com pequenas paradas pelo caminho, em terrenos baldios não tão baldios. Filas de tratores e homens ocupavam pequenas e médias áreas muradas de areia. Os últimos, em sua maioria, tinham a pele curtida pelo sol; os velhos usavam turbantes grossos e encardidos cobrindo as cabeças e muitos dos mais jovens uma espécie de saia, sarong, semelhante às “cangas” usadas por brasileiras na praia.
Umair, o homem jovem e alto, então se dirigiu a mim e explicou: ele e o homem gordo, seu cunhado, tinham uma empresa na área de construção em Dubai. Negociavam máquinas e mão-de-obra com empreiteiros da Europa, dos Estados Unidos e do Oriente Médio. Enquanto seguia para a casa deles, como convidada para o almoço e jantar, parávamos de tempos em tempos pelo deserto, para que eles cuidassem do seu comércio.
Quando finalmente chegamos em Sharjah, já estávamos há quase duas horas em deslocamento. Não é um lugar feio, mas muito mais simples e conservador que Dubai. A tolerância aos hábitos ocidentais é menor, não é comumente frequentado por turistas, as roupas são mais largas e mais longas e veem-se menos mulheres nas ruas.
Observando as ruas de Sharjah, percebi uma grande concentração de asiáticos. É para esse emirado que migram paquistaneses, indianos, filipinos, indonésios, malaios e tantos outros que trabalham no setor de serviços em Dubai. Viver em Sharjah é mais barato, e regras mais conservadoras garantem a paz de espírito eventualmente perturbada no contato diário com os ocidentais.
Eu já me sentia livre da apreensão que me acompanhara por todo o caminho e já considerava Umair e Musharraf dois grandes amigos. Antes de chegar em casa, fomos a um shopping local para comprarmos o almoço da família. De lá percorremos menos de um quilômetro por vias arenosas – em Sharjah só há pavimentação nas áreas centrais – e estacionamos em frente a um prédio antigo, de três andares, sem portas e elevadores. Subimos alguns lances de escada e paramos em um andar onde duas ou três portas abertas, lado a lado, permitiam ver pequenos apartamentos. Um deles era de Musharraf e Sadia, cunhado e irmã de Umair.
Na pequena sala, uma menina por volta dos seus oito anos se inclinava sobre um dos braços do sofá, enquanto um velho de barba longa e laranja segurava um livro negro e grosso e se dirigia a ela. Não tive tempo de ensejar um cumprimento, Umair me arrastou para o único quarto da habitação e pediu que aguardasse até segunda ordem, fechando a porta. Fiquei desconfortável, mas logo Sadia entrou e explicou que sua filha estava tendo aulas religiosas na sala, pediu com gentileza que eu aguardasse que logo iríamos almoçar.
Meia hora depois eles me colocavam à mesa. Não havia jantado na noite anterior, nem tomado café pela manhã. Acreditando piamente que meu corpo estava em processo de autofagia, foi com prazer glutônico que encarei o sanduíche e as batatas fritas à minha frente. Sem muita discrição e nenhuma delicadeza, avancei sobre os pratos, quando fui tomada por uma sensação desagradável de que estava sendo observada. Levantei os olhos da comida e fui surpreendida por uma câmera digital me focalizando e paralisei. Diante de minha confusão, uma Sadia envergonhada justificou: “minha mãe estava curiosa para ver a visita, então, se você não se incomoda, ela pode observar enquanto você come?”
Acenei para a câmera e constrangida finalizei a refeição. Depois fui à frente do computador ver quem era que me espiava. Do Paquistão, uma matrona simpática, envolta em véus coloridos, sorria de orelha a orelha diante da estrangeira comilona. Em um inglês incompreensível, traduzido pelos filhos, dizia que me aguardava no país e que eu era bem-vinda em sua casa.
Uma criança minúscula passa correndo pelo quarto, emitindo grunhidos ligeiros que só a mãe compreendia. Chorava e mostrava os dedos de alfinete. As vizinhas indianas comemoravam o Diwali, uma festa religiosa hindu, também chamada de Festival das Luzes. Em celebração, acenderam velas por todo o apartamento e no hall de entrada. A pequena arteira, curiosa por conta da iluminação, tocou o fogo, queimando as mãozinhas. Sadia mencionou o fato e me arrastou para conhecer as amigas. Ignorando a sangrenta partilha ocorrida no território indiano há mais de 60 anos e que até hoje produz frutos de discórdia entre os povos da Índia e do Paquistão, ela sentou confortavelmente entre duas jovens hindus e se pôs a tagarelar. Uma mulher mais velha foi até a cozinha e voltou com uma bandeja de biscoitos em formato de estrela e copos cheios de um líquido cor-de-rosa. Fui instada a provar os biscoitos e aquilo que julguei ser leite e morango em pó. Ao virar o copo, dezenas de macarrões transparentes inundaram minha boca e o líquido perfumado irritou minha língua. Tentando disfarçar a repulsa, empurrava com os dedos os macarrõezinhos pendurados nos lábios de volta ao copo, enquanto com esforço engolia os que estavam na boca, sem mastigá-los. Sadia percebeu meu embaraço e me resgatou, tirou o copo das minhas mãos e avisou que tínhamos que ir. Rindo no caminho pelo corredor, confessou: “Também não gosto muito de leite de rosas.” Fiquei chocada diante da constatação de que as indianas bebiam cosméticos – mais tarde descobri que não se tratava do mesmo leite de rosas industrializado, e sim de água literalmente extraída de rosas e depois adicionada ao leite para dar sabor – e quis saber dos macarrões. Chamados de faluda, são feitos de gelatina e comumente utilizado em doces populares no subcontinente indiano.

eu e a pequena dos dedinhos de alfinete

A tarde já avançava quando pedi a Umair que me levasse a uma lan-house. Precisava verificar alguns emails. O dia estava quente e eu transpirava sob os inúmeros panos que me cobriam. Para meu alívio, entramos em uma lojinha com ar-condicionado. Um ambiente notadamente masculino, onde minha chegada causou curiosidade e algum desconforto. Umair me apontou uma cabine mais reservada e distante dos grupos de homens e sentou próximo ao computador ao lado do meu. Passei a ler e responder emails, quando ouvi o ar-condicionado desligar. Longos minutos se passaram e o calor começou a me angustiar, e novamente o barulho do ar-condicionado. Alívio. Mais alguns minutos, e o ar-condicionado para de funcionar. Tempos depois, a volta do ar frio. Logo após, novo desligamento. Quando me dei conta do “liga e desliga”, comentei com o Umair que o aparelho deveria estar com algum problema. Ele gargalhou ao me explicar que era tão-somente o dono do estabelecimento tentando economizar energia elétrica. Advindas de países como a Índia e o Paquistão, onde energia elétrica contínua é um bem raro e caro, algumas pessoas tinham desenvolvido estratégias próprias de racionamento de eletricidade e economia.
Da lan-house fomos a um café ao lado de uma mesquita em Ajman, um terceiro emirado. Enquanto tomávamos chá e fumávamos shisha, um costume local, Umair me falava da situação política no Paquistão. De uma família socialmente ativa no país, Umair teve dois irmãos assassinados em disputas de poder. Vinculado ao PPP – Pakistan People´s Party ou Partido do Povo Paquistanês – era o próximo Malik a tentar posição política na província Punjabi.
Fomos interrompidos pela chegada de Sadia e Musharraf com as filhas, com quem nos dirigimos a um mercado indiano e depois a um restaurante libanês. No cair da noite, fui devolvida à casa da minha amiga, que a essa altura me mandava por celular a centésima mensagem ameaçando contatar a embaixada. Feliz e grata, me despedi da família com a promessa deles de resolver minhas questões de visto e com a promessa minha de confortar a matriarca que me aguardava em Lahore.

Paquistão (2008): Meu coração está com você

            Se o purgatório é quente, o inferno é escaldante. Depois de uma aterrissagem estressante – paquistaneses em um voo são como crianças: não escutam ordens, fazem o contrário daquilo que lhes é solicitado, são ansiosos e sem noção de perigo – pôr os pés naquele chão e sentir o ar escandalosamente quente e seco do Paquistão foi de um prazer indescritível. Abraçar a nova amiga e sua sogra “big brother” e tagarelar ininterruptamente no caminho para o hotel me fez esquecer que eram 4h da manhã e que eu estava exausta após 21 horas em atividade.
            Atendendo meus pedidos, Cintia reservou um pequeno hotel, bem localizado. O prédio era novo e simples. Apenas 3 ou 4 andares, frente envidraçada e decoração agradável. Dois atendentes homens estavam na recepção, preenchi os papéis e fomos levadas ao que seria o meu quarto. O quarto era bem espaçoso, duas camas de solteiro enormes, chão encarpetado, uma penteadeira de madeira, um sofá e criados-mudos completavam a mobília. Eu já tinha ouvido falar da falta de asseio nos hotéis, restaurantes, mercados e em áreas de circulação pública no país, mas nada me preparara para aquilo. Quilos de poeira pelos móveis e em suspensão no ar. Toalhas e lençóis sujos e todos os cigarros do mundo apagados em cinzeiros pelo quarto. Antes que eu me pusesse desesperada, a sogra da Cintia saiu do quarto em direção à recepção, onde reclamava em duro e incompreensível urdu, a língua do Paquistão. Eu não podia distinguir se ela só falava ou brigava. Certo é que, em poucos minutos, minha bagagem foi retirada do quarto e fui levada a um outro, cuja única diferença era a ausência de cinzeiros com cigarros. A Sra. Malik, a sogra, sorriu satisfeita e eu me resignei frente ao fato. Abrimos as malas e eu entreguei à Cintia e à sogra presentes e comida. Às 5h da manhã, elas me deixaram. 

quarto do hotel

           Tranquei a porta, cobri minha cama com xáles, tirei o travesseiro da mochila e resolvi descansar - em quatro horas estaria de pé para um dia que prometia ser cheio. Após enviar uma mensagem de texto ao Yaser, o amigo lahori, confirmando o encontro às 9h da manhã, caí em sono profundo para cinco minutos depois acordar sobressaltada com fortes batidas na porta.
            Levantei tensa e joguei um dos xáles sobre o vestido que ainda usava, abri a porta, e os dois recepcionistas do hotel se encontravam parados, sorridentes, carregando uma bandeja com algo que parecia um coquetel. Em coro, cantaram: “welcome drink”. Apesar de cansada, não resisti aos risos. Aceitei a bebida e me despedi. Fechei a porta e deixei o copo sobre o criado-mudo sem a menor coragem de descobrir do que se tratava. Sabia que no Paquistão bebidas alcóolicas eram proibidas, então nem imaginava o que podia ser aquele líquido amarelado que me fora oferecido. Voltei para a cama e nem bem fechei os olhos, novas e intensas batidas. Assustei-me. Perguntei quem era e em reposta recebi: “Por favor, abra senhora!” Mais uma vez abri a porta, e dois novos rapazes me perguntavam se eu precisava de algo. Azeda, respondi que às 5h e meia da manhã, apenas dormir. Eles se despediram, fechei a porta e voltei pra cama. Resolvi ligar para o Yaser, apesar do horário, para tentar entender o que acontecia, com sono ele foi educado e apenas disse: ignore e não abra mais a porta. Nem tinha desligado o telefone quando ouvi novas batidas e de novo o “Por favor, abra senhora”. Silenciei e eles continuaram, pedi que fossem embora que queria dormir, repetiram a frase de tal forma que imaginei que estariam chorando. Sem desligar o telefone – de alguma forma me sentia mais segura com um amigo do outro lado da linha – fui até à porta e abri. Felizes, dois outros jovens diferentes me entregaram jornais.
Antes que uma procissão de pessoas decidisse que meu quarto era um lugar sagrado, avisei endemoniada que iria dormir e sob hipótese nenhuma abriria novamente a porta e que caso tivessem qualquer “welcome qualquer coisa” para me dar, que por favor me entregassem em pelo menos cinco horas ou que deixassem na entrada, de onde eu retiraria mais tarde.
Enfim, a paz, o sono, o calor. O calor insuportável. O calor realmente insuportável. Dei um pulo da cama, arrancando o vestido. O ar-condicionado parara de funcionar, mexi na lâmpada e ela não acendeu. Ligo na recepção e o atendente me avisa sobre as constantes interrupções de luz no país. Desligo frustrada e procuro a janela. Não há janelas no quarto. Uma cortina pesada de veludo cobre uma parede grossa e embaçada de vidro, sem qualquer mecanismo que permita sua abertura. Esgotada, uma boa ideia afasta o choro. Corro para o banheiro imundo e abro o chuveiro. Entro embaixo da água, gelada para o meu consolo. Sem coragem de usar as toalhas sujas do hotel, me visto encharcada e me deito feliz na cama coberta com xáles.
Às 9h da manhã desperto com o interfone. Era Yaser, pontualmente vindo me buscar para o café. Apesar das poucas horas de sono, me sentia bem e pedi que subisse ao meu quarto, sem me dar conta que este ato, repetido diversas vezes ao longo dos dez dias que fiquei no país, fez os empregados do hotel entenderem que éramos casados, já que a amizade entre homens e mulheres ou namoro são conceitos inexistentes no país, que segrega os gêneros mesmo após o casamento.
Nos cumprimentamos com um abraço, depois de um longo processo de preparação a que submeti o moço enquanto ainda planejava a viagem. Tentei mostrar que não havia sentido em encontrar um amigo de tão longe e não poder dessa forma demonstrar afeto. Defendi que não havia maldade ou segundas intenções no ato. Ele aquiesceu. Tomamos café juntos e andamos pelos arredores.
Yaser tinha 29 anos. Alto e forte, cabelos pretos e fartos, rosto largo e bochechudo, nariz e queixo proeminentes, e olhos emoldurados pelas características olheiras paquistanesas. Costumava reclamavar da pele esverdeada que assumia uma tonalidade ainda mais escura durante o verão e, assim, ele se via preso a tratamentos estéticos, sempre às voltas com cremes clareadores, obsessão cosmética de dez entre dez paquistaneses.
O rapaz era engenheiro químico, mas em decorrência das constantes crises no país, há cerca de quatro anos se encontrava desempregado. Sua situação era espelho de muitas outras situações de jovens formados no país. Estava deprimido e tinha grandes dificuldades em falar sobre o futuro. Sendo assim, passávamos horas falando sobre o presente, ainda que este não fosse feliz ou fácil. Para sobreviver com a mãe viúva, Yaser alugava a porção superior de sua casa por 200 dólares ao mês e dava aulas particulares de química e matemática por três dólares a hora. Mesmo assim, não se atrevia a reclamar muito da vida, em um país onde mais de 85% da população é analfabeta e miserável.
Voltamos ao hotel pouco antes do horário de almoço. Ele precisava ir para casa ver a mãe e trocar de roupa para ir à mesquita. Eu cheguei ao Paquistão em uma sexta-feira, dia da semana em que o trabalho é suspenso após o horário de almoço e em que a tarde é dedicada às orações. Nesse dia, os jovens trocam o jeans pelo shalwar kameez, a roupa tradicional do país, o tal pijama branco que eu havia visto pela primeira vez na Austrália. Nas cabeças de homens e meninos, o chapéu cobrindo cabelos, em sinal de respeito a Alá – como Deus é chamado no Islã. Mulheres rezam em casa, protegidas por véus ou dupattas.
No hotel, eu aguardava um outro amigo, Muzammil, o DJ. O paquistanês cabeludo era analista de sistemas e músico nas horas vagas. Adorava cantar e produzir bandas de amigos roqueiros, à revelia dos críticos de plantão, religiosos que não viam com bons olhos o hobby do moço. DJ era apaixonado por Sehrish, uma paquistanesa de Islamabad, cuja família não aceitava o relacionamento dos dois. Costumavam se encontrar escondidos para fazer planos de um futuro juntos que ainda duvidavam se seria possível. Foi de um desses encontros furtivos que ele chegou a Lahore. Trazia um presente comprado em conjunto, um sino dos ventos, para que quando eu ouvisse o som lembrasse do casal.

eu e Dj

Ao sairmos do quarto para ir à rua, fui surpreendida pela presença de todos os funcionários do hotel, que resolveram almoçar no chão do hall do meu andar, bem em frente ao meu apartamento. Ao abrir a porta, dei de cara com o olhar de cerca de 15 homens curiosos, que nos convidavam para almoçar.
Resolvemos comer em um Mac Donald´s. O fast-food era uma solução segura para um paladar conservador como o meu. Mas, nem tão segura como eu imaginava. Pedi um Bigmac, sanduíche tradicionalmente feito com hambúrguer de bife. Para minha surpresa, no lugar da carne vermelha, hamburgueres de frango altamente apimentados. “Mas, eu pedi Bigmac normal!” DJ balançava a cabeça, sorrindo: “O Bigmac normal aqui tem carne de frango e pimenta, você tinha que ter pedido um especial de bife, sem tempero!”

McDonalds,com  seus detectores de metal
e muita pimenta

Caminhando de volta ao hotel, descobri que precisava ir ao banheiro, depois de quase 1 litro de coca-cola para amortecer a língua. Paramos, então, em uma galeria de tecidos. Após passar por uma sequência de detectores de metal – que estão por toda parte, na entrada de todo e qualquer lugar aberto ao público em Lahore – um segurança nos apontou o toalete feminino. Tomada daquela sensação de incontinência que acomete pessoas “apertadas” quando elas se aproximam do banheiro, saltei à distância uma velha deitada no batente da porta e estanquei incrédula diante do buraco aberto à minha frente. Não havia vasos sanitários no banheiro. Só buracos e buracos, uns aos lados dos outros, separados por paredes finas, com pequenas jarras de água no canto. Senti a vontade de usar o banheiro imediatamente passar e voltei às gargalhadas para onde me esperava DJ. Expliquei que não fazia ideia de como “usar” os buracos e questionei a existência de banheiros com vasos. Ele descobriu um deles no último andar. Enquanto subíamos, as luzes se apagaram, a escada rolante travou e eu, em pânico, agarrei Muzammil. Absurdamente constrangido, ele sussurrava: “Pode me soltar, só acabou a luz, não é um ataque terrorista”.
Ao entrar no banheiro, verifiquei que não havia papel higiênico em nenhuma das cabines. Duas meninas conversavam em frente ao espelho e perguntei se elas sabiam onde eu poderia conseguir papel. Sem compreender elas me perguntaram para quê. “Eu pretendo usar o banheiro.” Uma delas me olhou enojada e disse: “Aqui usamos a ducha, é mais higiênico.” Constrangida, tentei consertar: “Mas, e como vocês se secam?” Ao que uma delas replicou: “Naturalmente”.
Na volta ao hotel, pegamos um rickshaw – espécie de moto acoplada à uma mini-carroça, utilizada como táxi em Lahore –, foi só aí que tive a dimensão do trânsito caótico do Paquistão. Automóveis de todos os tipos e idades atravessam as vias sem sinalização, em todas as direções e velocidades. Enquanto isso, dezenas de pessoas, adultos e crianças, atravessam de um lado a outro ruas e avenidas, driblando carros, caminhões, motos, ônibus, bicicletas, camelos e rickshaws, como numa partida de videogame.
Os dias que se seguiram foram felizes e divertidos. Eu já me acostumara à sujeira dos lugares, ao caos e aos olhares curiosos. Entre passeios, conversas e compras eu ia me deixando amar aquele lugar estranho, muitas vezes miserável, mas paradoxalmente lindo, culturalmente rico e habitado por pessoas generosas e amigáveis. Construções antiquíssimas e milenares, inúmeras áreas verdes, mesquistas iluminadas, em contraste com prédios decadentes e em ruínas, uma profusão de fios elétricos e pôsteres de propaganda.
Impressionava-me a circulação restrita de mulheres nas ruas e no exercício de funções de trabalho em hotéis, restaurantes e lojas. Sempre homens por toda parte. O âmbito de influência e lugar de presença das mulheres é o lar. Desde cedo elas são doutrinadas para se tornarem esposas, mães e boas donas de casa. Nisso consiste o mérito de uma mulher. Apenas famílias mais modernas investem em educação e permitem que suas mulheres tenham uma carreira. Um bom casamento é, na maioria das vezes, motivo de orgulho maior do que um sucesso acadêmico ou profissional. E isso se reflete na pomposidade das bodas.
Eu estava na casa Cintia, com Umair, aguardando a sogra para irmos a um centro de compras. Ela entra no carro carregando dois álbuns grossos com fotos dos casamentos das filhas. A princípio não me dei conta que se tratava de dois casais diferentes, isso porque os casamentos foram arranjados entre irmãos, muito parecidos. As duas filhas da Sra. Malik casaram com dois irmãos, Rana Musharraf e Rana Muqarab. Envaidecida com os meus elogios em relação aos trajes das noivas e decoração da festa, ela lembra de um casamento que acontecia na casa vizinha e me arrasta para fora do carro, no intuito de me levar até lá. Em um calor que deveria beirar os 40 graus, uma menina linda, em um vestido de noiva azul e vermelho, coberta de jóias, estava sentada em uma cadeira, de frente pra uma cama repleta de mulheres que riam alto e cantavam músicas. Ela parecia cansada, molhada de suor e, ao ser cumprimentada por mim, deu um sorriso débil e agradeceu.
Festas de casamentos podem durar dias e, durante este tempo, cabe à noiva ficar sentada por horas em um banco ou cadeira, recebendo os cumprimentos dos convidados da celebração, o que pode se tornar uma tortura caso algum dos familiares decida pela realização da festa no verão.
Para ocidentais o evento pode ser exaustivo e entediante, mas as decorações e os trajes são exuberantes e um espetáculo à parte, a comida é farta, a conversa é boa, e paquistaneses apreciam estes eventos, já que são uma das poucas formas de interação social religiosamente aceitáveis no país.
 Deixamos a pobre moça em meio às hienas cantoras e fomos até o mercado comprar pulseiras de vidro, souvenires tipicamente paquistaneses, que enfeitam os pulsos de todas as mulheres do país. Produzidas artesanalmente, são lindas e sensíveis, se quebram a qualquer pressão. A agilidade e delicadeza das paquistanesas no trabalho doméstico permite que lavem, passem e cozinhem, usando dezenas dessas pulseiras em ambos os braços, mantendo-as intactas até o final de cada dia.

mercado em Lahore


Passando por um beco escuro, próximo de uma área de esgoto, de chão úmido e paredes lotadas de propagandas na língua local, nós logo chegamos a um pequeno agrupamento de barracas onde me deparei com as multicoloridas bangles. Sem saber por onde começar, ia apontando uma a uma as cores dos conjuntos que pretendia comprar, para a satisfação do dono da barraquinha e cobiça de seu assistente. Quando dei por mim, o homem quase desaparecia atrás do balcão coberto por uma infinidade de pulseiras. Nessa hora entra em cena a sogra. Exercendo a função de minha advogada, ela passa a negociar um a um os conjuntos de pulseira, numa disputa de nervos que impressiona. É o divertido jogo da barganha, que eu como estrangeira, não saberia jogar. Os ânimos se acirram, as vozes se elevam e uma infinidade de caretas provam que estou diante de grandes atores. Consigo acompanhar um pouco da história, porque os valores são tratados em dólar e escuto, pouco a pouco, os preços despencarem em função das pressões da Sra. Malik. Saio feliz proprietária de duas caixas cheias de pulseiras, para a satisfação dos vendedores e de minha orgulhosa interventora.

negociando pulseiras com Mrs. Malik

           No retorno ao hotel, paramos em um restaurante a pedido da mãe de Umair. Ela volta carregando pacotes de pão, que logo corta em pedaços servindo a si própria e nos enfiando – a mim, Cintia e Umair – goela abaixo, em pequenas porções.
            Estacionando o carro para que eu descesse, Umair é abordado por duas figuras inusitadas. A Sra. Malik se excita e me faz descer do carro para uma sessão de fotos com ela. Dois travestis, bem maquiados, trajando roupas tipicamente paquistanesas e femininas, abusando de trejeitos coquetes e de frases ambíguas e divertidas. Fiquei assombrada. Nunca imaginei encontrar tais personagens em um país islâmico e conservador, cheio de regras rígidas de conduta para homens e mulheres.

travesti "paquistanes(a)" 

            E foi com a sensação de que o meu tempo era pouco para o tanto de surpresas que o Paquistão guardava que deixei o país, com a expectativa de um dia retornar e descobrir um pouco mais de todo aquele universo, para mim tão alienígena quanto humano.

Dubai (2012): Estou a três horas do meu paraíso

Durante três anos e meio planejei retornar ao Paquistão. Ao longo desse tempo ampliei meus vínculos com o lugar, estudei sua política, sua cultura e sua história. Fiz novas amizades e passei a frequentar as reuniões das mulheres que se relacionavam com paquistaneses, elas apaixonadas por homens, eu por todo o país.
            Decidida a voltar, me dei conta de que muita coisa seria diferente. O país já não era mais uma autocracia, Osama Bin Laden havia sido finalmente capturado, o número de explosões e ataques haviam diminuído bastante e estavam restritos às áreas em guerra, Yaser havia arranjado um emprego, a Sra. Malik já não estava entre nós, Muzammil e Sehrish finalmente casaram (um com o outro) e eu não iria para Lahore, e sim para Islamabad.
            Cheguei em Dubai no começo de fevereiro, revi velhos amigos, fui a clubes noturnos, quase perdi o controle em promoções de shoppings, enquanto me preparava para um período de dez dias no longínquo Japão, antes de pisar em terras paquistanesas.
            Ansiosa eu calculava os dias e as horas para a próxima etapa da viagem, e pensava que estava tão perto, mas logo estaria novamente longe do meu objetivo principal e final, que era voltar ao Paquistão. Pensava nos amigos queridos, nos lugares novos que iria visitar, nos tecidos coloridos, nas pulseiras de vidro, no povo simples e de comportamente, por vezes, engraçado, no chamado para as orações – Azan – que ecoava das centenas de mesquitas espalhadas pelas cidades.
            Estava a três horas do paraíso, mas ia demorar um pouco mais para chegar, porque antes ia encontrar amigos nas distantes ilhas nipônicas.

Japão: “Porque os nossos paquistaneses são mais produtivos”

            Cheguei ao Japão às 17h, depois de um voo de 7h e meia, turbulento da metade para o fim, devido aos fortes ventos, comuns na região. Depois de longas horas de stress, o medo de voar se tornou insignificante, incapaz mental e fisicamente que eu estava de prolongar por tanto tempo os rituais que costumava repetir a cada balanço da aeronave.
            Em Osaka, à perturbação pelas horas de voo instável, somou-se a confusão durante minhas tentativas de compreensão dos textos ininteligíveis em placas por todo o aeroporto. Eu não entendia uma palavra do que via e ouvia e já não tinha forças nem para me irritar. Por sorte encontrei um casal de brasileiros descendentes de japoneses que falavam fluentemente a língua e serviram como intérpretes em um diálogo com a guia responsável pelo ônibus que me levaria à Nagoya.
            Em Nagoya, Melissa e Kashif me esperavam. Eu tinha conhecido Melissa há alguns anos, em um dos encontros de mulheres que amam paquistaneses. Ficaria hospedada na casa deles durante dez dias.
            Melissa é a jovem mãe de uma adolescente e de uma menina de 8 anos, meiga e engraçada, tem os cabelos lisos e negros e olhos levemente puxados, heranças genéticas da família japonesa, mas é encorpada como boa parte das brasileiras, razão pela qual vive em guerra com a balança.
            Kashif, um paquistanês de Karachi, capital da província de Sindh, região portuária e importante centro financeiro comercial do país, mora há vários anos no Japão. Compra e vende automóveis, negócio dominado pelos paquistaneses no país onde são produzidos alguns dos melhores carros do mundo.
            Ao contrário de Dubai, onde a acumulação de riquezas é controlada e mais ou menos restrita aos árabes locais e a alguns investidores internacionais, no Japão, esforço e empreendedorismo são sempre recompensados, e muitos paquistaneses e estrangeiros advindos de partes mais pobres da Ásia encontraram na terra do sol nascente oportunidades de crescimento.
            Muitos paquistaneses acabam casando com japonesas ou mestiças, descendentes como Melissa, que é neta de japoneses por parte de mãe e filha de um brasileiro.
            Em um país não-islâmico como o Japão, os paquistaneses tendem a ser mais tolerantes com hábitos ocidentalizados. Ao mesmo tempo, não se sentem tão deslocados, porque o país apesar de moderno mantém tradições antigas que o tornam mais conservador que outros países laicos.
            Conversando com Melissa, no entanto, ela me relatou vários dramas envolvendo paquistaneses e suas mulheres no Japão. Muitas delas, sem saber, eram esposas de um segundo casamento dos maridos – cuja religião permite a poligamia –, homens desesperados por vistos japoneses ou que se apaixonaram pelas novas mulheres, sem coragem ou caráter suficiente para romper os antigos laços com suas esposas paquistanesas. Alguns deles mantinham por anos as duas famílias até que a bigamia viesse a ser descoberta, muitas vezes tarde demais, quando ambas as mulheres já haviam lhe dado filhos ou a situação deles no Japão já estava consolidada.
            Fato é que a comunidade paquistanesa no país é relevante e produtiva e, pouco a pouco, cede à miscigenação com os japoneses.
            Durante os dez dias que fiquei no Japão, vivenciei a dinâmica de famílias multiculturais, como administram a rotina, os impasses e os acordos. Conheci o lado rural e urbano do país, passando os dias entre Hamamatsu e Tóquio, e senti a harmonia existente entre o velho e o novo, o antigo e moderno, o natural e o tecnológico. Mas, meu tempo por lá terminava e em poucos dias eu retornaria ao Paquistão.

Paquistão (2012): O retorno

            Voltando de Osaka, passei por Dubai exausta, mas precisei de exatos dois dias para me reanimar.
            Pronta para a terceira etapa da viagem, peguei um táxi para o aeroporto cerca de 2h e meia antes do voo. Agradeci a Deus ter chegado tão cedo. Uma fila enorme de indianos carregando caixas gigantes contendo televisões de LED aguardava para o check in. Todos falavam ao mesmo tempo e não fosse tão improvável, qualquer um poderia supor que eram todos parentes, tamanha a intimidade com que berravam uns aos outros, trocavam caixas e malas e deixavam os últimos passarem à frente. Resolvi sentar em um dos bancos e aguardar o fim da fila indiana.
            Já no avião, ao localizar meu lugar, uma mulher completamente coberta chama a minha atenção e pede para que eu troque de assento com o marido que estava sentado em outra fileira. Sozinha, concordei com o pedido e passei para o outro lado da aeronave. Quando já estava sentada, me dei conta de que estávamos próximas, separadas somente pelo corredor. Tive a impressão que sorriu pra mim, mas não pude confirmar porque um véu negro e espesso lhe cobria a cabeça, com duas pequenas aberturas que só permitiam entrever o par de olhos. Senti-me ligeiramente mal ao observar minhas calças pretas justas e o vestido curto cor-de-rosa e abotoei o casaco. O marido era jovem e bonito, vestia uma shalwar kameez bege sob um casaco da mesma cor, usava o chapéu das rezas e uma barba islâmica que ia até a altura do peito.
            O voo foi em boa parte tranquilo, dentro dos limites para um voo lotado de paquistaneses. A decolagem é um sofrimento para comissários de bordo e pessoas com medo de voar, como eu. Com todas os avisos luminosos acesos e o avião ganhando velocidade, ainda havia passageiros teimando em reorganizar malas no bagageiro ou simplemente em pé ao lado de outros, batendo papo como se estivessem em um bar. Durante as horas de cruzeiro, é impossível dormir ou ir ao banheiro. Todas as crianças decidem chorar ao mesmo tempo, mulheres riem e falam alto, homens circulam. Botões de chamado aos comissários são constantemente pressionados por passageiros que sempre querem mais água, comida, e atenção.
A aterrissagem é um desafio à parte. Meia hora antes, o piloto sinaliza o procedimento de descida. Comissários a postos, começam o processo de convencimento dos passageiros, que deverão sentar-se na posição vertical, apertar os cintos e aguardar a chegada do avião ao solo e sua completa parada. Depois de longos minutos de insistência por parte dos funcionários da companhia aérea, todos os passageiros estão posicionados conforme as regras de segurança. Pelos meus cálculos faltavam cerca de cinco minutos para a aterrissagem quando uma paquistanesa magra e alta, em shalwar kameez vermelho, solta o cinto e, como se estivesse apostando uma corrida de 100 metros rasos, percore o corredor até o banheiro sem dar tempo de o comissário interceptá-la. O homem nervoso esmurra a porta e ordena que saia e retorne ao lugar antes que o avião pouse. A mulher ignora. Ele promete arrombar. Um minuto depois, ela sai como se nada tivesse acontecido, segue calmamente para o seu lugar, enquanto o comissário esbaforido retorna ao seu assento, em sincronia com a aterrissagem que ocorre nem um segundo depois.
A visão do aeroporto me emociona. Como o Papa polonês, tenho ímpetos de beijar o chão, mas o bom senso me impede. O que praticado por alguns é ato nobre e solene, por outros pode representar indício de insanidade.
            Era minha segunda vez no Paquistão e a primeira em Islamabad. Novamente, amigos queridos me aguardavam no saguão. A população da capital federal, mais acostumada aos estrangeiros em virtude das inúmeras embaixadas e consulados estabelecidos por lá, não me encarava com tanta intensidade quanto no aeroporto de Lahore. Mishal, Zohaib e a pequena Zahra portavam um cartão com o meu apelido e pareciam felizes em me ver, talvez não tanto quanto eu em vê-los e em retornar ao país.
            Após uma agradável noite de sono, dessa vez sem os percalços da primeira noite em Lahore, acordei com Mishal convidando para o café da manhã. Zohaib tinha ido para o trabalho e ficaria fora até o fim do dia.
            Mishal, que é brasileira e foi registrada Everyn, assumiu o nome islâmico após sua conversão, dias antes do casamento. Maquiadora, trabalhava desde os doze anos em salões de beleza, produção de desfiles e televisão, mas com tranquilidade abriu mão da profissão, assumindo as funções de mãe e dona de casa. Sem grandes conflitos com o marido, ajustou-se à cultura, à religião e ao país.
            Conversamos o dia inteiro e, com a chegada de Zohaib, concordamos em jantar fora e ir até uma bela região de montanhas, conhecida como Margalla Hills, que fica localizada aos pés do Himalaia. Depois de uma ida ao supermercado, onde alguns curiosos nos perseguiam por entre gôndolas, aparentemente atraídos pela língua diferente que falávamos, passamos em uma rede de fast food e compramos sanduíches. Dali, seguimos direto para Margalla, subindo uma estrada cheia de curvas e que não terminava nunca. Depois de vários minutos, chegamos a um dos pontos mais altos, de onde se estendia uma das paisagens mais impressionantes: toda a cidade de Islamabad podia ser vista do alto, abraçada por uma cadeia de montanhas.
            Na descida, paramos em uma cabana para um chai (chá) e, em seguida, uma caminhada. Aflita, observei inúmeras placas que avisavam: Macacos mordem! Zohaib explicou que naquela área existiam vários animais selvagens e as pessoas tinham o hábito de querer tocar ou alimentar os bichos, em particular, macacos. Por via das dúvidas, não quis me distanciar muito do estacionamente, o que foi motivo de risos por parte dos meus anfitriões.

macacos me mordam!

            Dois dias depois, Zohaib nos levou às minas de sal de Khewra, a algumas horas de Islamabad. Atravessamos pequenos vilarejos e logo chegamos às montanhas de sal, cuja descoberta data da época de Alexandre, o Grande. Contam que quando ele passava pela região com suas tropas, notou que os cavalos começaram a lamber o chão. Intrigado, teria se juntado a eles e verificado que as rochas eram salgadas.
            Percorremos cerca de 500m mina adentro, em uma espécie de trem, semelhantes àqueles comuns em parques de diversão, bastante corroído pelo sal e pelo tempo. Descemos próximos à uma mesquita de sal, construída no interior da mina, que quando iluminada, dava a impressão de arder em fogo, assumindo variados tons de laranja. Outras construções, tão ou mais impactantes, se espalhavam pelas minas, que se comunicavam por túneis, escadarias e pontes suspensas sobre profundos lagos de água salgada.

Mina de Sal, Zohaib e Zahra

            Deslumbrada com o que eu tinha visto até então, estava ansiosa com a próxima etapa de nossa programação: um passeio pelas ruínas do templo hindu Katas Raj. Eu tinha visto fotos e o lugar parecia belíssimo, mas para minha frustração, no dia exato que lá estávamos, o sítio estava fechado para peregrinos hindus e vetada qualquer visita. De longe eu avistava as ruínas, mas nem um sinal dos lagos de água transparente que circundam o templo.

o templo não visitado :(

            Nos dias seguintes, enquanto Zohaib trabalhava, Mishal e eu carregávamos a pequena Zahra em nossos passeios por comércios nas redondezas. Já começava a me perturbar a dependência da presença da um homem para que pudéssemos ir à outras partes. No Paquistão, mulheres não costumam andar sozinhas e dificilmente são vistas nas ruas das cidades. Na volta de um desses passeios, observei em frente a um quarteirão com bancos uma fileira de táxis. Em um deles, um papel na janela anunciava em inglês os contatos do motorista, que vendo meu interesse, logo se aproximou. Discutimos valores e sua disponibilidade e, depois de alguma barganha, comprei nossos passaportes para a liberdade. Seu Nawaz, o motorista, nos buscaria pela manhã para nos levar ao banco e ao mercado.
            Pontualmente, à hora marcada, o homem tocou a campainha da casa. Pequeno e franzino, Seu Nawaz tinha os traços característicos de grande parte dos paquistaneses, o tom de pele, os cabelos lustrosos e as onipresentes olheiras. Um bigode enorme ornava os lábios.
No banco, não consegui movimentar minha conta e me afligi. Teria que ir até o aeroporto buscar informações nos balcões de câmbio. Seu Nawaz nos levou até lá, mas ao invés de entrar com o carro no estacionamento, parou no acostamento de uma grande avenida que passava em frente a um dos acessos do terminal de embarque. Não entendi seus motivos, mas mais tarde descobri que a administração do aeroporto resolvera cobrar o estacionamento com base no número de pessoas no carro. Isso porque, o terminal pequeno era rotineiramente invadido por dezenas de famílias inteiras que iam buscar ou levar entes queridos em viagem, dificultando a segurança e a circulação.
Do outro lado da avenida, eu me perguntava de que maneira o motorista imaginava que eu poderia atravessar a via larga e movimentada, onde automóveis rodavam em alta velocidade. Diante da minha paralisia, ele saiu do carro e me respondeu. Chacoalhando os braços e avançando ele foi abrindo caminho entre os carros, enquanto me gritava ordens para avançar, tal qual Moisés abrindo o Mar Vermelho para os hebreus. Chegamos sãos e salvos ao outro lado da pista e da mesma maneira retornamos ao carro.
Já no mercado, Seu Nawaz nos aguardaria enquanto percorríamos as lojas. Após duas ou três horas, voltamos aonde ele estava parado e nos deparamos com uma cena curiosa. Entretido, o motorista desmontava a direção do carro, apertando parafusos e torcendo e retorcendo fios. O automóvel amarelo era pequeno e antigo, a parte traseira não comportava mais do que duas pessoas, a lataria estava corroída pela ferrugem e parecia nunca ultrapassar os 40km\h – o que não era de todo ruim, levando-se em conta o estado recém-descoberto do volante.
Em meu último fim de semana no país, fomos para Murree, uma cidade turística no topo de montanhas cobertas de neve. O caminho é tortuoso em razão da subida e das inúmeras curvas. A mudança de paisagem é gradual e acompanha a mudança de temperatura. À medida que avançamos, o frio é mais intenso, a vegetação é mais seca e de coloração arroxeada e a neve cobre o chão. O ar é mais úmido e rarefeito. Nas bordas da estrada, desafiando penhascos, velhas construções abrigam hotéis lotados de turistas em qualquer época do ano. As majestosas montanhas de Murree são destino de gente de todas as partes do país, em particular, de recém-casados em lua de mel, como Gramado e Campos do Jordão no Brasil. Um pouco mais pretensiosos, os locais a apelidaram de Suiça paquistanesa.

Murree

Em lugares como esse e em outras partes do Paquistão, que incluem Lahore e a própria Islamabad, os contrastes sociais são ainda mais evidentes. Pessoas e construções que denotam poder aquisitivo e modo de vida privilegiado são como rasgos de riqueza em meio à miséria.
O povo sofre com a falta de atendimento às suas necessidades mais básicas. Não há dinheiro, alimentos, instrução, moradia, saúde, saneamento, eletricidade e respeito e, algumas vezes, há raiva, intolerância, fanatismo, desunião e má-vontade. Mas, quase sempre, há sobras de afeto.
Em solo paquistanês, nunca fui discriminada, ofendida ou maltratada. Apenas, encontrei amigos, histórias e vivi experiências que valem para toda a vida.
Retornei ao Brasil dois dias depois da ida a Murree, já com saudades imensas de tudo o que fiz, vi e vivi por lá. Na despedida, após um último serviço prestado, o amigo motorista, curioso sobre a minha origem, me perguntava:
-Mas, você é de onde mesmo?
Eu esclarecia:
-Do Brasil, Seu Nawaz.
-Mas, e onde fica esse Brasil? É Reino Unido?
Anos de colonização britânica justificam a dúvida. Paquistaneses mais humildes e de pouca instrução têm pouco ou nenhum conhecimento de geografia, e sua única referência estrangeira é o reino em questão.
Eu tentava explicar, mas mencionar a América, do Norte ou Latina, Estados Unidos ou Canadá em nada ajudou a elucidar a questão.
Diante dos meus esforços, ele apenas disse:
-Não se preocupe não, dona. Só anota aí pra mim o endereço, que se um dia eu puder, vou lhe visitar.

  
***


Making of comentado

Paquistão em dois tempos

Gêneros e formatos:

            O texto elaborado trata-se de Narrativa de Viagem feita ao continente asiático, enfocando experiências vividas por mim, a autora, no Paquistão.
            Narrativas de viagem não são textos turísticos ou roteiros de viagem, mas textos autobiográficos que falam de sensações e sentimentos provocados por experiências simbólicas.
            O impulso de viajar e conhecer novas culturas, em busca da humanidade que é comum a todas elas, é algo que acredito que nasceu comigo e se desenvolveu em minha infância e adolescência, por influência paterna e pela expansão natural da minha própria curiosidade.
            Narrativas de viagem envolvem muitos aspectos: emocionais, culturais, políticos, econômicos, sociais e históricos. O recorte da pauta é um processo difícil e doloroso porque, invariavelmente, o sacrifício mesmo de pequenos detalhes implica na simplificação de algumas experiências que só podem ser compreendidas em sua dimensão se levados em conta os mínimos fatores que a impactam.
            Viagens para mim são, sobretudo, fontes de conhecimento e entretenimento. E a diversão e o prazer consistem em desvelar o mundo desconhecido, compreender seus mecanismos de interação, aprender a lidar com as idiossincrasias dos sujeitos e ser finalmente aceita em novos grupos.
            Viagem é coisa pra quem gosta de gente, porque não há nada que desafie mais a capacidade do indivíduo em estabelecer relações humanas que possam garantir sua sobrevivência em situações as mais diversas. E, em qualquer canto do mundo, só se sobrevive em grupo.
            Foi a partir deste ponto de vista que eu parti ao elaborar o texto, inteiramento expresso em voz autoral. Apesar de ser um texto fortemente narrativo, em função de sua natureza, busquei trazer elementos bastantes de descrição, com parágrafos sobre cenas e pessoas, citações e diálogos, bem como elementos de digressão, quase sempre resgatando meu fluxo de consciência no momentos das experiências narradas e descritas.
            A humanização do texto é inquestionável, uma vez que sou minha própria personagem e ali exponho em minúcias meus atos, sentimentos e pensamentos. Em relação aos demais, parti de duas análises: Uma mais racional e concreta, narrando ações e descrevendo pessoas fisicamente; outra mais emocional e abstrata: descrevendo emoções, interpretando comportamentos e expondo impressões sobre os indivíduos com os quais interagi.
            Obviamente não esgotei no texto todas as possibilidades. A narração pode se dar sob diversos ângulos e diferentes ritmos e linguagens. Considerando prazos e espaço, optei por dar ao texto um ar divertido e bem humorado, enfocando alguns choques culturais e o relacionamento com as pessoas. Os primeiros encontros, a curiosidade entre as partes seguida das reações de incredulidade, o sentimento de pertencimento a um grupo do qual antes nunca se fez parte. Deixei questões políticas e históricas em segundo plano, que seriam relevantes e permitiriam um melhor enquadramento da cultura do país no caso de ampliação deste primeiro texto ou mesmo sua transformação em livro.
            Objetivei exercitar nos processos de apuração e execução do texto os sete pilares do jornalismo literário, conforme passo a descrever no próximo item que aborda o processo de definição e realização da pauta.

Pauta:

            A pauta nasceu de uma paixão. Amo viajar a lugares diferentes e a sensação de choque cultural sempre me causou mais prazer que receio. No entanto, ao longo dos anos desenvolvi um carinho especial por um pedaço em particular do planeta, situado no subcontinente indiano: o Paquistão.
            Não sei como nem por que se iniciou tal processo de identificação, mas uma série de eventos sincrônicos ao longo dos anos só reforçaram meus vínculos e afeição ao país.
            Como em outras situações, o tema se impôs e não foi previamente planejado. Tanto que a ideia inicial, debatida durante as sessões de orientação era a realização de um texto baseado em minha última viagem ao lugar. Mas, ao dar vazão à criatividade na elaboração do mapa-mental, vi que pontos essenciais da minha primeira estada no país precisavam ser revisitados. Dessa forma, ao pôr no papel as ideias, optei por incluir os primórdios de minha relação com o oriente e minhas primeiras incursões em terras asiáticas.
            A presença dos sete pilares do Jornalismo Literário é inequívoca. A imersão, configurada na viagem em si e no contato com os nativos do país. A humanização, representada pela voz autoral no texto e presença de personagens. A responsabilidade assumida em relação ao que é apresentado ao leitor, bem como a exatidão das informações contidas na narração. A criatividade é demonstrada através das figuras de linguagem e na definição do próprio estilo, pessoal e bem-humorado. O simbolismo se verifica na ação, comportamento, forma de se vestir e expressar dos próprios personagens,  e em minhas decisões baseadas em impulso, intuição, complexos e atrações inconscientes.

Produção:

A produção se deu ao longo de quatro anos. Tem início com a minha primeira ida ao Paquistão, em 2008 e abrange meu retorno ao país, em 2012.
Entre 2008 e 2012, li livros sobre o lugar, acompanhei jornais e sites de notícias e ampliei minha rede de relacionamentos no país. Mantive contato com a Embaixada brasileira em Islamabad, bem como com a Embaixada paquistanesa em Brasília. Realizei trabalho de pesquisa e texto sobre mulheres que amam paquistaneses, e em diversos encontros com elas, absorvi conhecimento útil a uma melhor compreensão da estrutura social paquistanesa.
De posse de todo esse arcabouço teórico e prático, criei alguns mapas mentais no intuito de facilitar o processo de elaboração do texto. Utilizei algumas das técnicas de escrita-criativa ensinadas no curso da ABJL, em conjunto com as técnicas de visualização ensinadas em aulas ministrada pelo Professor Edvaldo Pereira Lima.
             O momento mais difícil do trabalho, foi a primeira leitura após a conclusão. Alguns ajustes foram necessários, mas tive que resistir ao impulso de ampliar ainda mais o texto, sob pena de não conclui-lo a tempo para a certificação. A cada leitura, imaginava várias outras maneiras de contar a mesma história e a decisão tomada de manter muitas de minhas escolhas iniciais veio depois de eu concluir que, de alguma maneira, tinha alcançado o objetivo da história, que era trazer ao leitor um lado mais suave e humano de um país e sociedade que é muitas vezes vistas apenas como rígida e perigosa.

Inspirações:

            As inspirações são várias. Indubitavelmente devo muito aos mestres da ABJL, sobretudo Professor Edvaldo Pereira Lima que, com sua paixão e didática, me orientou nesse processo de desenvolvimento dos meus textos. Os conhecimentos trasmitidos através de suas aulas e livros foram essenciais para o aprimoramento de minhas qualidades narrativas. Mais do que isso, a honestidade e o zelo, bem como o equilíbrio de seus posicionamentos nos momentos de avaliação em muito contribuíram para a minha motivação e auto-confiança como autora e me ajudaram a definir o caminho que pretendo trilhar daqui para a frente.
            No que diz respeito a estilo, critico e admiro Oriana Fallaci. Embora discorde veementemente de sua postura demasiado agressiva em relação ao que não concordava e, particularmente, de seus ataques radicais a muçulmanos e ao Islã após os eventos do 11 de Setembro, aprecio seus textos inteligentes e sarcásticos, e sua honestidade de pensamento. 
            É fonte, também, de grande inspiração, o escritor Tiziano Terzani. Mais do que como autor, sua integridade e seu pacifismo são valores que prezo e pretendo perseguir. Curiosamente, conheci mais de Tiziano após a leitura de cartas que ele teria escrito em resposta a artigos escritos por Oriana, e que foram publicadas no Jornal Corriere della Sera, onde as duas personalidades que admiro, discutiam a guerra e a paz no Oriente Médio.
            Por fim, dois outros autores também tiveram suas influências neste trabalho: Karin Mittmann, escritora e professora alemã citada no início do texto, que escreveu um livro fantástico sobre o Paquistão, após uma vida inteira no país em função de um casamento; e Fernando Scheller, jornalista do jornal O Estado de São Paulo que, recentemente, publicou uma narrativa de viagem deliciosa sobre os dois meses que passou no país.

Referências Bibliográficas: 

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: O Livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1995.

MITTMANN, Karin. Culture Shock! A Guide to Customs and Etiquette. Singapura: Kuperard, 2004.

SCHELLER, Fernando. Paquistão, Viagem à Terra dos Puros. São Paulo: Editora Globo, 2010.

Dawn. Disponível em . Acesso em: 30 abril 2012. 

Um comentário:

Carol disse...

melhor parte eh deixar secar naturalmente huahuhauhahaua