domingo, 24 de junho de 2012

NÃO QUERO SER NIEMEYER








Eu nunca gostei de dormir na casa de outras pessoas.

Quando ainda era uma criança, naquela idade em que a ideia de desbravar novos mundos era traduzida em dias de brincadeiras e noites de sono na casa de coleguinhas, nunca me sentia bem diante da possibilidade de me entregar a Morfeu em qualquer outro lugar que não fosse o meu quarto.

O cômodo amplo continha duas camas de solteiro que eram unidas todas as noites e o espaço persistente entre elas preenchido por um cobertor peludo e listrado em laranja, marrom, amarelo e vermelho. À direita meu corpo, à esquerda o de minha irmã, Alline. Muitas noites, minha mãe se deitava sobre o buraco coberto, nos fazia rezar e contava histórias cujos finais delirantes me intrigavam e à Alline irritavam, quando esta atenta notava que eram frutos do estágio avançado de sono em que a narradora se (des)encontrava.

Não havia mosquitos, nem barulho, só o vento gelado e agradável do ar-condicionado, as várias camadas de colchas de piquet, os travesseiros de pena e os narizes entupidos de vick-vaporub.

Era tão agradável o estado das coisas, que a menor ideia de me faltar qualquer uma delas, era suficiente para me tirar o sono. O primeiro bocejo na casa de alguma colega era o alerta de que era hora de ir para casa.

Uma série de mudanças bruscas em minha vida me conduziram, então, a um extremo antes inimaginável. Tornei-me nômade. Dos 16 aos 31 anos, troquei de casa dez vezes e, em poucos meses, deverei me estabalecer naquele que será meu décimo-primeiro endereço. Mas, o nomadismo a que me refiro, vai além da questão da residência. De apegada às mínimas coisas que me cercavam na infância, tornei-me um indivíduo caótico, apaixonado, instável e desasossegado. Foram tantas as camas diferentes, as amizades novas, as separações familiares, os reencontros de alma, os mosquitos, o frio, o calor, e as histórias, coerentes ou não, vividas e contadas por mim mesma, que hoje eu só tenho o meu próprio eu como referência torta e ideia de lar, porque por onde quer que eu ande, é sempre para mim que eu acabo por voltar. Não tolero mais permanências e nem vick-vaporub.

Sou pouco afeita a decorações de ambientes. Em nenhum dos trabalhos que tive, em salas de aulas e escritórios, cultivei o hábito de manter porta-retratos e objetos pessoais. A ideia de ter que retirá-los quando chegasse o momento de ir embora me perturbava. Tentei vencer essa impessoalidade nos lugares em que vivi, mas a coisa toda saía desastrada e incompleta, entregando esse estado de alma de “sempre pronta para partir”.

À medida em que este meu suposto desapego por situações e lugares cresce, uma saudade infinita e colossal de tudo que eu vivi às vezes aperta. O que torna pior essa nostalgia, é que ela é representada por rostos e vozes, braços, pernas e sentimentos.

Não me importo com as mudanças de planos, caminhos e sonhos. Não me importo mais com o desconforto do diferente. Mas, algo, dolorosamente, permanece em mim. A necessidade de ter as pessoas que fazem parte da minha vida, ao meu lado, em seus postos e condições, imutáveis, presentes, reais. Jamais me acostumarei a perder pessoas. Do conforto de encontrá-las, cumprimentá-las, abraçá-las, conversar com elas, nunca serei capaz de abrir mão resignada. Não aceito ser abandonada. Penso que só a mim caberia o direito de ir, nunca a possibilidade de ser deixada.

Só que o tempo não faz concessões e varre os personagens da minha história sem pedir permissão. Levou-me os avós, a professora de Biologia, alguns dos meus ídolos, o pai do homem que eu amo. E, em alguns momentos, seu tic-tac infernal invade meus ouvidos, meu cérebro, meu espírito, me despertando para a precariedade desta vida.

Há dois dias, atrasada  e sonolenta, eu jogava o corpo para dentro de um táxi, praguejando contra a humanidade incompetente e preguiçosa que ainda não inventara o teletransporte. No caminho para o trabalho, o taxista, e velho conhecido, comenta a morte de um dos porteiros do meu prédio. Enquanto ele puxava o nome em sua memória, eu vasculhava a minha, organizando imagens de homens por turnos de trabalho. Em sincronia com a figura que eu visualizava, o nome pronunciado pelo meu condutor: “Seu Edvaldo”.

Seu Edvaldo era o porteiro do dia e homem da administração. Nunca soube ao certo a função que exercia, mas era ele quem me acodia em momentos de dúvida sobre regras condominiais, nas confusões com entregas da lavanderia e quem sempre autorizava, sem muita encrenca, meus pedidos de livre-circulação de carros de amigos e parentes em minha vaga de garagem. Mas, o que eu mais apreciava no Seu Edvaldo, era seu jeito atencioso de cumprimentar cada uma das pessoas que passavam pelo portão do prédio. De dentro da casinha de vidro, ele sempre acenava. Sua figura agradável me confortava. Pequeno e entroncado, mulato, a carapinha cortada rente ao couro cabeludo, um par de óculos e um blaser azul-marinho, são estes os substantivos e adjetivos bastantes para caracterizar fisicamente o homem; no entanto, foi-se a oportunidade e eu jamais saberei quais os adjetivos e substantivos suficientes para descrever sua personalidade. O certo é que, Seu Edvaldo era aquele cobertor listrado no meio da cama, o ar-condicionado potente, minha oração diária. Seu Edvaldo era a referência, o ponto fixo, o conforto, em meio a rotina estressante, caótica, impessoal. Podia tudo mudar, todos os dias, toda hora, mas eu me reconheceria sempre no começo de cada dia, ao sair de casa e avistar de longe o homenzinho que balançava a cabeça em retribuição ao meu olhar.

Seu Edvaldo acordou bem cedo e foi preparar-se para o trabalho, enquanto vestia o blaser marinho em um dos braços, foi tomado de assalto por uma dor fulminante que lhe tirou a vida após render o coração. Ao saber dos fatos, em solidariedade ao coração vitimado, o meu coração se apertou e eu fui tomada de uma tristeza súbita ao me dar conta de todas as ausências matinais que adviriam ao longo de cada um dos dias que ainda faltam para minha nova mudança de lugar. Senti um pouco de raiva e de frustração. Não era para ele ter ido. Era eu quem o iria abandonar. Como ele ousara? Pensei pesarosa na família de Seu Edvaldo, nas duas filhas ainda muito jovens, mas, nessa horas, sou egoísta demais para esquecer minha própria dor.

Após um longo dia de trabalho, retorno ao meu apartamento em meio a algumas elocubrações que me davam esperança de que o motorista que me deu a notícia tivesse se equivocado. A poucos passos do portão de entrada, meu coração se acelera, e eu sigo aos saltos em direção à ladeira que me permitiria ver a casinha de vidro no alto. Alguém me cumprimenta. Eu trazia uma mala roxa de viagem – cuja presença na cena, vou me permitir não justificar – que arremessei à minha frente, dei meia volta e em pequenos trotes me dirigi à portaria. Sorriso de orelha à orelha. À minha frente surge um homem muito alto, jovem e gordo. Fecho a cara, mas noto um movimento dentro do lugar, tento avançar, mas o gigante me impede a passagem e fica ansioso com a minha ausência de explicações. Começo a ficar impaciente e pergunto:

-  Quem tá aí?

O moço franze a testa e um outro se junta a ele, saindo de dentro do lugar. Não consigo disfarçar a decepção:

- Mas, cadê o Seu Edvaldo?

Eles se entreolham surpresos, sem entender. O homem grande abre a boca:

- Mas, ele faleceu... A senhora não viu o aviso no elevador?

Como uma criança, me desespero um pouco, aperto os olhos e disparo, após bafejar:

- Eu sei, mas alguém me cumprimentou...E eu tinha a esperança que não tivesse sido ele...que morreu...

Os dois homens vão da estupefação à indignação e, por fim, às gargalhadas. Em uníssono rebatem:

- Então a senhora tinha esperança que tivesse sido um de nós???

Um deles ainda rindo e contrariado:
- Deus do céu, antes ele do que eu!

Quis enfiar a cabeça de avestruz no buraco. Como pude ser tão indelicada!? Quis explicar que a esperança do engano não era desejo de desventura de outrem, mas faltou energia, vocabulário e, talvez, um pouco de convicção.

Subi os cinco andares pensativa, triste e envergonhada. Continuei assim por dias e concluí que não quero mais que ninguém que eu conheça suma da minha vida. E não quero que minha vida dure tanto tempo assim que isso se torne inevitável. Não, eu não quero ser Niemeyer.

2 comentários:

Ruth Rendeiro disse...

Infelizmente nem sempre é a gente quem vai na frente, não somos nós que levantamos por primeiro o braço para o adeus definitivo. O mais doloroso, Rebecca, é deixar os Seus Edvaldos partirem sem que saibam o quanto já faziam parte de nossas vidas, o quanto sentimos faltas deles.
Teu texto está lindo! As lágrimas molharam o teclado pelos que já passaram pela minha vida e por tantos outros que sei um dia partirão na minha frente. Seja morrendo completamente ou apenas transformando-se e desaparecendo irreconhecíveis.
Niemyer deve ter vivido isso tantos vezes ...

Patrícia Cassolatto disse...

Pois e eu tambem nao quero ser Niemeyer, so quem ja perdeu pessoas que amava sabe o que eh.

Muito bom o seu texto adorei

bju