segunda-feira, 18 de junho de 2012

YES, NÓS TEMOS MAÇÃ



          Em uma ruazinha inclinada de paralelepípedos, na Glória – o  bairro da zona sul carioca mais próximo da região central, que jaz espremido entre os tradicionais bairros de Santa Teresa, Lapa, Flamengo e Catete – observa-se, de um lado e outro, uma fileira de casarões antigos, cuja imponência cedeu espaço à degradação. Janelas e portões carcomidos pela ferrugem e as inúmeras pichações nos muros, por pouco não impedem os transeuntes de adivinhar a persistente beleza das velhas construções do lugar.

          Entre um casarão e outro, uma estreita passagem protegida por grades, deixa entrever uma pequena vila ao fundo. Equilibrando-se em uma altíssima sandália plataforma, uma mulher opulenta, vestida com uma calça preta costurada ao corpo, camiseta regata amarelo-limão justa aos quadris e um pequeno top branco coberto por lantejoulas prateadas e douradas, caminha lentamente e sem vontade em direção à entrada. Após uma breve troca de cumprimentos, ela comenta aborrecida que o motorista que a levaria a uma festa, que se iniciara às 14hs na quadra de uma  escola de samba, tivera qualquer problema e não poderia buscá-la em casa. Tentaria contato com um outro moço que ocasionalmente lhe prestava serviços de transporte, mas explicava que não podia precisar quanto tempo demoraria até que ele chegasse. Nesse instante, estabelecem-se os limites e o padrão de nosso relacionamento ao longo das dez horas em que acompanhei Gracy Kelly, a mulher-maçã.

          Evasiva, Gracy Kelly diz “não” sem pronunciar a palavra. Deixou claro, sem abrir a boca, que eu não poderia passar da área da calçada, mas educadamente postou-se junto à parede da campainha onde demos início a uma conversa truncada, um tanto superficial e cheia de pausas e interrupções, que se arrastaria até 1.30h da manhã do dia seguinte.

          Enquanto ela me passa a programação do resto do dia, três meninas entre 7 e 8 anos, aproximam-se encantadas com a moça, excitadas diante de tanto brilho e reconhecendo sua imagem dos programas de televisão. Uma delas mostra-se bastante surpresa ao constatar que vivem próximas: “Mulher-maçã, você mora aqui???” Duas das pequenas disputam sua atenção, enchem a vizinha famosa de abraços, elogiam sua beleza, tocam as unhas longas e desenhadas, os cabelos escovados, as pulseiras coloridas e, por fim, pedem beijos e emprego. A terceira menina, mais tímida, apenas observa. Gracy Kelly, desgastada pelo assédio, ao qual correspondeu com aparente doçura e educação, pede licença para voltar à casa por alguns minutos e saber do motorista que aguardávamos. As crianças se voltam para mim, dão início a uma espécie de concurso e me exigem como juíza. Suspendendo as camisetas e empinando os pequenos traseiros, passam a imitar, freneticamente, passos de funk enquanto ansiosas aguardam meu veredicto sobre qual delas seria a candidata ideal à colaboradora da Maçã. Constrangida com o espetáculo, suplico que parem e as convenço a voltar pra casa, depois de mentir que Gracy Kelly resolvera ir dormir e que eu mesma partiria em alguns instantes.

          Após minutos, Gracy Kelly retorna. Ao mesmo tempo  um carro estaciona e William, o motorista, abre a porta e nos cumprimenta. No caminho, eu tento dar direção à conversa.
         
          Antes de deixarmos nosso ponto de encontro, a dançarina havia falado um pouco sobre sua relação com o funk, gênero musical que a tornou conhecida.  “Bem, música que a gente gosta é música que a gente escuta em casa, né? Pergunta o que eu escuto! Gospel e MPB.” O som que ela aprecia no dia a dia é bem diferente do batidão ritmado, de coreografia sensual que ela executa em shows nos fins de semana.

          Volto ao assunto no carro, diante de uma Gracy Kelly frustrada. No caminho para Padre Miguel, onde a presença da mulher-maçã é aguardada, passamos pelo aterro do Flamengo, onde o seu estado de humor é justificado. Naquela tarde, o maior evento de música religiosa já realizado no país reunia milhares de pessoas e a dançarina ansiava se juntar a elas. “O que eu não posso fazer, tu podes. A mudança que eu preciso, tu podes. O milagre que eu espero, tu podes. Senhor, vem me socorrer. O meu milagre, Senhor, eu tomo posse. A cura que eu preciso, eu tomo posse. A minha benção, Senhor, eu tomo posse. Abro as mãos para  receber”, ela cantava, fechava os olhos, implorava ao motorista que passasse mais próximo e devagar do lugar onde um telão transmitia ao vivo Regis Danese, um dos expoentes da música gospel da atualidade, e lamentava.

          Toca o telefone. O tom de voz sutilmente alterado e o jeito de falar de Gracy Kelly denunciam o interlocutor. Um bom tempo de conversa, sem nomes, sem frases longas, reafirmam sua habilidade de dizer sem verbalizar. Ela desliga e eu aproveito a deixa, indagando sobre a existência de um namorado. Ela confirma e se cala. Insisto no tema. A relação tem cerca de um ano, não há grandes expectativas, ela gosta do rapaz, mas não tem planos de casamento. “Gosto dele, mas não penso nisso. Vai demorar.” Disfarço a surpresa. A declaração, somada à conversa que presenciei, em bom português, faz crer que releases não muito antigos de sua assessoria sobre um suposto noivado com um ragazzo italiano, repercutidos na mídia especializada em bisbilhotar a vida privada de pessoas públicas, seriam material mais hábil a alimentar um romance do que páginas de revistas e jornais.

          Silêncio. Me vem à mente um outro tópico. Há pouco, nova polêmica em torno da figura curvilínea da Maçã gerou debates e deboches nos meios de comunicação. No intuito de ampliar alguns contornos de seu corpo, a moça teria dado início a um tratamento inusitado. Sua assessora, uma tia – conforme ela me confessara ainda na saída de casa –, declarara aos quatro ventos que Gracy Kelly estaria se submetendo a uma técnica tailandesa inovadora de aumento dos seios. Pasme-se: à base de tapas na cara. Não resisto: “Doeu?” Ela conta que a experiência, apesar de dolorida, fora gratificante. Questionei os resultados. Sem responder, ela me dá um tapinha na mão, com a outra gira o dedo indicando adiamento da conversa e aponta para o motorista. Insisto, num tom mais baixo: “Mas, onde eram os tapas mesmo?” Ela confirma a tortura facial.

          Pouco antes do nosso encontro eu havia percorrido sites de busca curiosa sobre o método sado-masoquista. De fato ele existia. Apenas um detalhe destoava da versão que me fora narrada: os tapas eram distribuídos na região que se queria ver aumentada. Tornei a olhá-la, das bochechas ao colo, do colo às bochechas, tentando compreender o que havia se passado.

          Chegamos à quadra da Mocidade. Um prédio antigo, branco, cujas entradas estavam protegidas por homens trajados nas cores da escola. Ao fundo, centenas de casas simples, desorganizadamente dispostas. No entorno, barraquinhas vendendo bebidas, cachorros-quentes e outras guloseimas de preparo duvidoso e certamente pouco questionado pelas pequenas multidões em pé que faziam seus pedidos ou sentadas degustando um dos itens do cardápio. O som do samba ecoava.

          As pessoas que liberariam a entrada de Gracy Kelly ainda não haviam chegado. Ela se coloca junto aos guardiões do portão de entrada e começa a telefonar. Um de seus anfitriões, do outro lado da linha, pede que ela aguarde sua chegada. Ela desliga o telefone um pouco contrariada, um dos seguranças nota e pergunta quem ela é. Mulher-maçã se apresenta como tal e completa: “sou musa da escola”. O rapaz contrai o rosto e avisa que o presidente está chegando com a família, como se pedisse um pouco mais de paciência. Ela confere as unhas, joga os cabelos de um lado para o outro, puxa a camiseta amarela para baixo – ritual recorrente ao longo das 10 horas que passei com ela –, lastima mais uma vez o show gospel perdido e passa a brincar com a touch screen de seu Iphone.

          O aparelho remete a mais uma controvérsia na curta vida midiática de Gracy Kelly. Steve Jobs, um dos fundadores da empresa de tecnologia Apple morreu de câncer. No embalo das notícias que repercutiram o fato, a assessoria da dançarina fez publicar uma nota onde ela chorava a morte de “Esteve”, o “inventor de grandes modernidades”, e abusava da criatividade ao cogitar um vínculo entre o reconhecimento da figura da moça no exterior e o sucesso dos empreendimentos de Jobs.

          Maçã se orgulha de seus shows internacionais. Diz que visitou a Europa, países da América do Sul e os Estados Unidos levando seu rebolado aos palcos de alguns eventos e fazendo marmanjos ensandecidos gritarem: “Ah, eu tô maluco”. O bordão é também letra – na íntegra! –  de um funk que ficou conhecido nos estádios de futebol em vários cantos do mundo, onde times brasileiros e outros sul-americanos disputaram partidas.

          Com a chegada da família-chefe da escola de samba de Padre Miguel, nossa entrada é autorizada e rapidamente chegamos ao camarote no primeiro andar  do prédio, reservado para familiares e amigos do presidente, convidados supostamente ilustres e figuras públicas mais ou menos conhecidas. Ela aponta um banco verde, longo e alto, em formato zig-zag, encostado na parede dos fundos do camarote, e se senta. “É o meu canto”. Quieta, cumprimenta pessoas que passam por ela. Algumas pedem fotos. Ela abraça, sorri. Abraça, sorri. Abraça, sorri.  Mecanicamente. Volta a sentar, e pergunto sobre seus pais.

          Gracy Kelly diz que é muito ligada à mãe, na casa de quem ela se encontrava nesses dias. Não deixou muito claro se realmente morava com ela ou se estava de passagem, apesar de mencionar uma segunda casa, da qual não deu pormenores. Em um vídeo recente de um programa de televisão chamado “Quem convence ganha mais”, Dona Dilma criticava a escolha profissional da filha, esta se defendia, e cada uma delas, com seus argumentos, objetivava ganhar o apoio do público e cerca de R$2.000,00 da produção. Intrigada, pedi que Gracy Kelly me contasse sobre suas primeiras investidas e trajetória no universo dos bailes funk, da televisão e da mídia da fofoca.
         
          À revelia de sua minibiografia no site wikipédia, que lhe atribui 1982 como ano de nascimento, Gracy afirma ter 27 anos de vida e 17 de carreira. Nesses aproximados 6205 dias, teria ganhado concursos de beleza, atuado como modelo em fotos e propagandas de televisão e se tornado uma das mais populares dançarinas de funk carioca. A mãe tem sido apoio e companheira de jornada, durante todo esse período. Gracy, no entanto, pontua: “Mas, eu sempre gostei dessas coisas. Eu mesma me inscrevia nos concursos, desde pequena".

          É impressionante o início precoce da dançarina. Consideradas as 27 primaveras da moça e seus 17 anos de trabalho, nota-se que ela já aos 10 anos buscava atrair os holofotes. “Você começou cedo”, observo. Ela gira os olhos e retruca: “Ué, e Sandy e Junior?”

          Sobre o pai, não fala muito. Comentou que ele mora nos Estados Unidos e restringiu-se à linguagem corporal para sugerir que não são próximos.

          Nossa aproximação é suspensa pela chegada de William, o motorista, que discretamente entrega à mulher-maçã o cartão de um senhor. Antes de enfiar na bolsa, me encara com o papel entre as mãos e contorce o rosto em esgar intencional. Pouco depois se levanta de seu lugar preferido e segue para uma mesa repleta de mulheres, onde se põe a conversar.

          Abandonada ao lado de William, aproveito para dar início a um diálogo mais profícuo em palavras do que os que tenho tentado manter nas últimas horas. O homem alto, negro e forte, é gentil e tagarela. Em poucos minutos me narrou a vida em São Paulo e a mudança para o Rio de Janeiro. Militar e músico da banda da aeronáutica, após afastamento de suas funções se estabeleceu na cidade carioca. Casado e pai de uma filha, para sustentar a família começou a trabalhar como motorista, servindo executivos, jogadores de futebol e outras celebridades. Por toda a noite, enquanto pequenos pedaços reluzentes de pano que imitam roupas passavam pelo camarote, ele apontava e nomeava vários de seus clientes.

          Vejo Gracy Kelly circular pelo ambiente e meus olhos são mais uma vez hipnotizados pelo seu derriére. A curiosidade feminina é aguçada pela maledicência do pequeno demônio ao meu ouvido. Inúmeras vezes a moça sustentou em entrevistas que é natural sua exuberância, mas a visão à minha frente e uma dose de leviandade me impedem de aceitar o fato.

          Ela torna a sentar. Blasé, anuncia um convite recebido para madrinha de bateria de uma outra tradicional escola de samba e me pergunta em que grupo eles estão. Afirmo desconhecer e ela dá de ombros. De repente, esclarece que não aprecia muito o carnaval e que aceitar convites de escolas para desfilar seria algo como uma troca de gentilezas, algo que faz por gostarem dela. Anoto mais um item na inverossímil lista de desprazeres de Gracy Kelly, a qual inclui  praia e baladas.

          Com o cair da noite, estrelas brilham no céu, enquanto  pessoas vestidas e travestidas  brilham nos camarotes e na quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel. O celular da musa cuja escola de samba em 2012 renderá homenagem a Cândido Portinari não para de tocar. É o namorado que liga pela enésima vez. Ela torna a repetir onde está e lembra que a bateria do aparelho está acabando. Nesse momento tenho um vislumbre de uma Gracy Kelly mais voluntariosa. Ela determina ao moço que este deve voltar para  casa, ainda que esteja ela mesma várias horas atrasada em relação ao momento marcado para o encontro dos dois, estabelecido na primeira da série de ligações. O comportamento caprichoso da moça se manifesta em pelo menos duas outras ocasiões.

          Logo mais ocorreria a coroação da rainha de bateria, uma atriz, esposa de um conhecido diretor de televisão. O camarote que à tarde estava praticamente vazio, com o passar do tempo é tomado por uma multidão de convidados, fotógrafos e jornalistas. Um grupo de organizadores do desfile se aproxima e um deles resolve tratar de alguns detalhes com a mulher-maçã. Avisa sobre um ensaio técnico agendado para o dia seguinte e informa que Gracy deverá desfilar sobre um carro alegórico, já que o número certo de musas ao chão já havia sido definido.

          Demonstrando, mais uma vez, o temperamento tenaz, ela terminantemente recusa a posição: “Não dá para sambar”. Argumenta com polidez, mas transpira contrariedade. Quando o rapaz se afasta, mais uma vez queixa-se do concerto religioso perdido.

          Câmeras a postos, a atmosfera do lugar muda. Esses objetos se traduzem em verdadeiros portais para o mundo encantado das matérias em jornais, revistas e páginas da internet, e boa parte dos ali presentes disputa passaportes. Não só roupas e sapatos chamam a atenção. A partir desse momento, os mais largos sorrisos se abrem, todos se adoram, os olhos se agitam, pessoas se abraçam, param para fotos em trejeitos ensaiados que simulam poses de passistas durante desfiles de carnaval.

          Nesse contexto, as fronteiras bem definidas que separam celebridades em classes são rompidas e por alguns minutos a ex-namorada do ex-jogador de futebol se torna pessoa próxima da moça que está todas as semanas em um programa de mexericos de um canal de televisão, e esta, por sua vez, é a melhor amiga do diretor de novelas que está ali acompanhando a mulher.

          Entre uma pausa e outra dos flashes, as moças correm ao banheiro para retocar a maquiagem, acertar os pequenos vestidos, recolher paetês caídos e disfarçar tecidos descosturados. Toda aquela vida observada momentos atrás se esvai, e as pessoas voltam a circular indiferentes. Até que o fotógrafo de uma revista famosa faz o convite, como se erguesse uma taça indicando o recomeço da festa, e todos reencarnam seus papéis.

          Seguindo o modus operandi dos demais, Gracy Kelly levanta graciosa e, cortês, cumprimenta um a um os presentes e se deixa fotografar. A despeito da simpatia, ela está desconfortável. Ciente da coroação da rainha naquela noite, ela havia optado por um dress-code mais recatado do que aquele a que está acostumada a recorrer em eventos dessa natureza. “Em um casamento as madrinhas não devem ofuscar a noiva”. A contragosto, observou que as outras musas não conheciam ou não se importavam com a tal regra de etiqueta.

          Saio de meu ponto de observação para olhar o palco, no caminho esbarro em Gracy Kelly e experiencio sua segunda manifestação de capricho. Ela me pede fotos com o diretor de TV, mas determina que eu devo avisá-lo. A timidez e o embaraço me impedem de dar um passo à frente e recebo um cutucão no ombro e uma careta. Passo por um momento de perplexidade, mas sigo adiante. Em frente ao homem, estaciono. Dezenas de pessoas se amontoam junto a ele. Evito a linha de tiro dos fotógrafos. Um apertão no braço e um “vai logo” me indicam a passagem do tempo.  Com um meio sorriso peço para fotografar e em segundos a dançarina está ao lado do diretor. São três cliques ligeiros e ela desaparece em meio às pessoas, depois de se certificar do enquadramento das fotos.

          Quase duas da manhã, percebo que mais uma vez ela me disse “não” sem mover os lábios. No começo da tarde, o plano era:  duas horas de presença na quadra e uma entrevista em algum lugar mais tranquilo. Entre tantas questões preparadas, uma em especial seria o ponto alto deste perfil.

          Em novembro deste ano, uma escritora árabe pós-feminista, Joumana Haddad, esteve no Brasil durante uma Festa Literária e fez uma comparação curiosa. “Mulheres de burca e mulheres-frutas são o mesmo, ambas são oprimidas pelo patriarcalismo”.

          Meu intuito era contar isso à mulher-maçã e ouvir sua opinião. Ela não quis. E eu, fui oprimida por sua voluntariedade. 

*Texto feito entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012

2 comentários:

Mel disse...

Minha amiga maravilhosa,como voce sobreviveu a tudo isso?Seu texto esta otimo,impressionante como vc consegue fazer quem le se sentir em seus olhos na historia,adorei!!!

Unknown disse...

hope you be alright